Promotor de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Cláudio Ari Mello lida diariamente com incontáveis ocupações urbanas em Porto Alegre. Em entrevista ao Jornal da Lei, ele descreve o cenário em torno dessa realidade na Capital, marcada pelo choque constante entre dois aspectos: o direito à propriedade privada e a ideia de função social da propriedade.
Jornal da Lei - Até que ponto é possível dimensionar a questão das ocupações urbanas em Porto Alegre? Há ideia de quantas são, de onde se concentram etc?
Cláudio Ari Mello - A verdade é que esses dados simplesmente não existem. Os números são sempre aproximados, e, muitas vezes, são produzidos por movimentos de luta por moradia, que têm uma boa perspectiva panorâmica, mas que não coletam dados com rigor científico. Alguns especialistas chegam a colocar que um terço da população brasileira vive fora do padrão de ocupação de área por direito de propriedade. É um percentual muito alto, construído no decorrer das décadas, e Porto Alegre, é claro, está inserida nesse contexto. Mas, o que é viver na informalidade? Há um leque muito grande de categorias dentro desse cenário. Há áreas que podem ser chamadas de ocupações, mas são tão antigas que, embora ainda sejam informais, já se tornaram irreversíveis. Ao mesmo tempo, há ocupações mais recentes, formadas por pessoas que vivem sem qualquer segurança na posse. Gente que não tem água, não tem luz, faz "gatos" e que pode ser removida ou despejada a qualquer momento. Nessa situação, em Porto Alegre, estamos falando na casa de centenas (de ocupações).
JL - Quais são as circunstâncias mais comuns para surgirem essas ocupações recentes?
Mello - Porto Alegre não tem um histórico na ocupação de prédios públicos, se compararmos com São Paulo, onde isso é comum. Nossas ocupações se dão em áreas, tanto públicas quanto privadas, que são vazios urbanos, que não cumprem sua função social. Em geral, essas ocupações se estabilizam rapidamente, já que há um grande déficit urbano, e as pessoas que delas tomam parte não têm outra opção de moradia. A região em torno do Alto Petrópolis, Mário Quintana, Rubem Berta etc., tem grande incidência de ocupações. E a Zona Sul, embora seja uma área com menos estrutura urbana e menor densidade populacional.
JL - De que modo a promotoria tem agido para mediar esses conflitos?
Mello - Em alguns casos, a partir de representações das próprias comunidades que pretendem sua regularização fundiária. Nossa função é auferir se a área está apta a ser regularizada e, se concluímos que é possível, buscar ações de regularização. À ocupação quase sempre se sucede o pedido de reintegração de posse, então esse processo quase sempre é judicializado e naturalmente chega ao conhecimento do Ministério Público. Desde 2015, o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul criou, dentro do Centro Judicial de Mediação e Conciliação, um núcleo que recebe as ações de todo o município e procura conciliar os proprietários da área com os ocupantes, buscando dar caráter definitivo à ocupação. Se é poder público (o proprietário da área), envolve a decisão de preservar a comunidade no local onde ela está e começar o processo de titulação e urbanização. Se se trata de uma entidade privada, o centro procura mediar a compra da área por parte dos ocupantes. Vamos fazendo reuniões exaustivas, tentando construir esse acordo, o que sempre é difícil. Os juízes não são obrigados a mandar os processos para esse núcleo, mas, na medida em que ele vem alcançando um sucesso razoável, o envio se torna mais frequente e, com isso, temos uma tendência de que a tentativa de mediação se torne mais efetiva.
JL - Uma questão que se colocou, a partir da tragédia no Largo do Paissandu, em São Paulo, envolve os movimentos sociais ligados à luta por moradia. Muitas acusações foram feitas sobre uma suposta exploração dos moradores, a partir da cobrança de taxas. Esses temores se justificam?
Mello - A questão da moradia é excluída do debate público no Brasil. Trata-se de um direito, de uma necessidade social que não conta com estrutura governamental e não é alvo de nenhuma política pública. É uma população marginalizada, desassistida, que não tem representação política, e os movimentos sociais surgem nesse vácuo. O fato de que existam desvios não pode deslegitimar seu papel de representação. As instâncias governamentais precisam aprender a dialogar com eles.
JL - E elas têm dados sinais nessa direção?
Mello - Não. Antes mesmo dos movimentos, os próprios ocupantes são vistos pelo Estado com um viés preconceituoso, como invasores e agressores de um direito primeiro e intocável à propriedade. Embora seja legítimo, em certo sentido, ver a ocupação como um ataque violento à propriedade privada, há uma hipersimplificação que falha em entender adequadamente um problema que existe, que veio para ficar e, se não for enfrentado, tende a aumentar mais e mais.
JL - Pelas características das ocupações em Porto Alegre, há risco de que ocorra um caso análogo ao do Largo do Paissandu?
Mello - O caso ocorrido em São Paulo acaba demonstrando como ocupações em prédios são mais complicadas. Tivemos dois casos recentes bastante simbólicos, nas duas ocupações promovidas pelo movimento dos Lanceiros Negros, e nenhum dos dois edifícios tinha condições adequadas para habitação. Boa parte dos prédios ocupados não foram projetados para habitação, então é preciso readequá-los para que possam cumprir essa função. Isso é custoso. Por outro lado, há várias vantagens: dá um destino para prédios abandonados e, se eu destino pessoas sem moradia para um prédio central, todos os custos de urbanização são eliminados ou ficam diluídos. Mas é preciso uma política pública de recuperação. Embora eu entenda a reivindicação por trás dessas ocupações (de prédios), enquanto a ocupação estiver ocorrendo de forma informal, as pessoas que estiverem lá estarão correndo riscos, como São Paulo mostrou.
JL - E há perspectiva, mesmo incipiente, de uma política pública nessa direção?
Mello - Não existe. Porto Alegre não tem programa de regularização fundiária e não tem política de recuperação de prédios abandonados. A única política é o Minha Casa Minha Vida. Os dados sempre dizem muito por si. Desde que o programa foi criado, em 2009, Porto Alegre só ofereceu 3 mil unidades. O déficit populacional mais modesto, calculado pelo IBGE em 2010, fala em 40 mil moradias (na Capital). É insignificante.