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entrevista especial

- Publicada em 08 de Abril de 2018 às 22:50

Partidos reforçam baixa representação feminina, afirma Patrícia

Pesquisadora vê resistência a candidaturas de mulheres

Pesquisadora vê resistência a candidaturas de mulheres


FREDY VIEIRA/JC
Em matéria de representação feminina nos Parlamentos, o Brasil amarga a última posição na América do Sul e a antepenúltima na América Latina, com um percentual de 9,9%, contra 23% em nível mundial, segundo dados do Banco Mundial e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo a pesquisadora Patrícia Rangel, ligada à Universidade de São Paulo, isso se deve ao sistema proporcional baseado em lista aberta, "que tem como efeito um caráter altamente personalista nas eleições", o que "prejudica diretamente as mulheres, que são a parcela mais empobrecida" e têm menos tempo para se dedicar à política, já que vivem a chamada "dupla jornada", de dedicação à vida pessoal e à profissão.
Em matéria de representação feminina nos Parlamentos, o Brasil amarga a última posição na América do Sul e a antepenúltima na América Latina, com um percentual de 9,9%, contra 23% em nível mundial, segundo dados do Banco Mundial e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo a pesquisadora Patrícia Rangel, ligada à Universidade de São Paulo, isso se deve ao sistema proporcional baseado em lista aberta, "que tem como efeito um caráter altamente personalista nas eleições", o que "prejudica diretamente as mulheres, que são a parcela mais empobrecida" e têm menos tempo para se dedicar à política, já que vivem a chamada "dupla jornada", de dedicação à vida pessoal e à profissão.
Patrícia - que veio a Porto Alegre a convite do PSDB Mulher e da Fundação Konrad Adenauer, ligada ao partido CDU, da presidente alemã Angela Merkel - pontua que esse cenário só pode mudar com uma alteração interna nos partidos, que "são resistentes historicamente à candidatura de mulheres". "Os partidos têm que mudar a postura. Têm que respeitar a cota, investir em candidaturas." A pesquisadora observa ainda que "ter mais recursos para mulheres aumenta a chance de eleição delas".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Patrícia também falou das diferenças e semelhanças entre legendas de direita e esquerda quanto à participação feminina, e comentou o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em 14 de março. "A morte dela vai ter uma função fortíssima, para colocar a gente para refletir sobre machismo, racismo, conservadorismo político", analisa.
Jornal do Comércio - Que panorama traça sobre a participação feminina na política representativa? Como vê a evolução dessa questão atualmente?
Patrícia Rangel - Há uma diferença entre a representação das mulheres no Brasil e no mundo. De forma geral, é muito ruim. Quando a gente olha para os Parlamentos do mundo todo, a média mundial de presença das mulheres é de 23%. Isso parece muito pouco, porém, no Brasil, é ainda pior. A média de representação das mulheres parlamentares brasileiras é de 9,9%. Geralmente, todas as matérias que falam sobre mulheres na política passam por esse percentual, porque ele é dramático. Considerando a América Latina, o Brasil é um país com quase o pior índice de representação parlamentar. A gente só perde para Belize e o Haiti. E na América do Sul nós estamos em último. Por isso, o Brasil é um caso emblemático de sub-representação das mulheres.
JC - Por quê?
Patrícia - São muitos os motivos. O principal é o sistema eleitoral, o tipo de dinâmica e regra que utilizamos para eleger candidatos no Legislativo. O nosso sistema de representação proporcional, combinado com o tipo de lista que adotamos, que é a lista aberta, tem como efeito um caráter altamente personalista das eleições. Não é à toa que o Brasil está entre os países que têm os gastos com campanhas eleitorais mais altos. Se você compara o Brasil com outros países latino-americanos, para candidaturas para a Câmara dos Deputados, o que um candidato brasileiro gasta é três vezes mais do que um candidato latino-americano. Isso prejudica diretamente as mulheres, porque são a parcela da população que é mais empobrecida. E a parcela que tem menos tempo também - e tempo é um recurso importante para se dedicar à política -, porque as mulheres acumulam trabalhos remunerados, não remunerados, com a casa, com os idosos, com os filhos.
JC - É difícil ser eleita deputada estadual e sair de sua base para ficar na capital, por exemplo.
Patrícia - Exato. Quando a gente traça o perfil do Congresso Nacional, o índice de mulheres divorciadas e solteiras é muito maior que o índice de deputados homens que são solteiros ou divorciados, porque geralmente a mulher não consegue compatibilizar a vida familiar e pessoal com a vida política. Nós não temos ferramentas para fazer isso, então geralmente você vai para a política quando não está mais incumbida das relações familiares. Então tem muitas mulheres também que já estão aposentadas, mais idosas, que os filhos já cresceram. E os homens, não; estão bem nessa fase de filho pequeno que a esposa cuida. Outro motivo é a resistência dos líderes partidários. Os partidos políticos têm um papel muito maior que o sistema eleitoral no que se refere à eleição de mulheres. Porque são eles que fazem o recrutamento de candidatos. E os partidos políticos são muito resistentes historicamente à candidatura de mulheres.
JC - O Brasil e o mundo estão vivendo uma nova época de contestação, principalmente na questão de gênero. Vê isso, de alguma maneira, refletindo na estrutura político-partidária?
Patrícia - Não necessariamente. Porque, primeiro, o Brasil é um dos países que têm um dos movimentos feministas mais vibrantes, dos mais interessantes. Dez anos atrás, quando eu falava de mulheres na política, tinha pouquíssimo espaço, e os feminismos ainda tinham muita resistência na população comum. Nos últimos anos, o feminismo passou por um processo de popularização, as ideias de igualdade de gênero estão sendo muito mais bem-aceitas na população. (Entende-se que) violência de gênero não é aceitável, que as mulheres têm autonomia e direito sobre o próprio corpo... Isso é extremamente positivo. (Mas) não necessariamente um processo de conscientização ou de abertura da população ao feminismo vai ter um impacto na política institucional, porque boa parte dos movimentos feministas também têm uma postura anti-institucional. Muitas vezes, os feminismos estão pensando em alternativas para além do sistema político como ele está colocado, para além da política eleitoral. Então avançar em reflexões sobre igualdade de gênero não necessariamente vai ter impacto sobre (a presença de) mulheres na política eleitoral.
JC - O que seria necessário para aumentar a participação feminina na política?
Patrícia - Em primeiro lugar, os partidos têm que mudar a postura deles. Têm que respeitar a cota, investir em candidaturas de mulheres. Isso significa recursos, tempo, colocar nas posições e lideranças partidárias. Isso é o básico. Em segundo lugar, fazer o que os movimentos feministas fazem, que é continuar trabalhando no processo da cultura política, e de transformação da cultura sexista, porque ainda existe muita resistência da sociedade quanto à presença das mulheres na política. Nós não somos educadas e socializadas para ocupar espaços de liderança, e isso é uma mudança de mentalidade, de longo prazo, que os feminismos estão fazendo há muito tempo. Outra coisa que tem que ser alterada são (as chamadas) barreiras socioeconômicas. As mulheres ganham menos, têm menos acesso a recursos financeiros. A feminização da pobreza também tem impactos muito grandes na política. Então, é preciso trabalhar no sentido de igualdade de salários, de oportunidades de trabalho. Outra coisa que tem a ver com esse conjunto de elementos socioeconômicos é arranjar ferramentas de compensar a divisão sexual do trabalho. As mulheres acumulam trabalho remunerado, trabalho doméstico e cuidados com filhos, com os doentes, com os idosos. É uma obrigação do Estado oferecer creche, instrumentos de apoio para o compartilhamento dessas obrigações. Por último lugar, as feministas têm proposto algumas questões para a reforma política. Por que não há cotas nas cadeiras (dos Parlamentos)? Porque nosso sistema eleitoral não permite, é representação proporcional com lista aberta. Teria que ser fechada, como na Argentina. A reserva de fundo partidário, de um percentual do fundo partidário para candidatura de mulheres, do tempo de propaganda partidária e de propaganda eleitoral também para mulheres. São coisas que gente sempre propõe.
JC - O Supremo aprovou o uso de uma reserva de 30% de fundo partidário para campanhas femininas. O que acha disso?
Patrícia - Fiquei atônita, porque essa é uma demanda que a gente coloca há muito tempo e ela nunca foi acatada. Então, a princípio, vejo com muito otimismo, porque esse tipo de mudança estrutural tem a capacidade de alterar a presença das mulheres. É desse tipo de coisa que a gente está falando quando diz que precisa mudar para que as mulheres melhorem suas chances de eleição. Ter mais recursos para mulheres aumenta a chance de eleição delas? Aumenta. Porque, no Brasil, as campanhas são muito personalizadas, e o fundo partidário cobre apenas 10% de uma campanha eleitoral. Quando você vai minando esse personalismo, você melhora as chances das mulheres. As candidaturas que são bem-sucedidas são aquelas que recebem recursos massivos de empresas, de empreiteiras; e, quando você limita isso, você está colocando em candidaturas que não têm isso - que são as de mulheres, da população negra e indígena. Mas é importante a gente lembrar que os fundos partidários cobrem menos de 10% de uma campanha. Então eu, candidata, preciso de R$ 10 milhões para fazer uma campanha mais ou menos bem-sucedida. O fundo não vai me dar nem 1% disso.
JC - Quais as principais fontes de entrada de mulheres na política? Uma das vias mais apontadas é como representantes de "dinastias familiares".
Patrícia - Essa coisa da herança familiar não é a principal porta de entrada das mulheres no Brasil. Geralmente, são mulheres que vêm de movimentos de base, de sindicatos, de movimentos sociais e que (já) estão (em outros cargos) na administração pública. Então esse é o perfil, e não a herdeira.
JC - A pouca participação feminina nos partidos e nas campanhas ocorre em só um lado do espectro político ou em todos?
Patrícia - Há várias pesquisas da Ciência Política que tendem a associar partidos de esquerda com uma maior inclusão de mulheres e partidos de direita com uma menor inclusão. Levanto dados em todas as eleições e, em geral, eu observo isso, (mas) nem sempre. Por exemplo, uma surpresa para mim na última eleição nacional, de 2014, (foi que) o DEM elegeu muitas senadoras, algo como 30% dos senadores do DEM eram mulheres. Mas é uma exceção. Tenho observado é que, no geral, os partidos de direita estão abaixo da média ou muito próximos da média nacional. Os partidos de esquerda estão acima da média no que se refere à representação das mulheres. (Na Alemanha), o partido da presidente Angela Merkel, por exemplo, está muito mal. Só 19% dos parlamentares do CDU são mulheres. Só perde para o AfD, que é aquele partido que flerta com o neonazismo, que tem 10% só.
JC - Mesmo um partido de extrema-direita tem mais parlamentares que a média brasileira?
Patrícia - Tem 0,1% a mais que a média nacional brasileira.
JC - Voltando ao Brasil, a esquerda brasileira é inclusiva na questão de gênero, portanto?
Patrícia - As esquerdas partidárias estão muito longe de serem o paraíso da igualdade de gênero. Não são. E tem uma crítica muito grande das feministas às instâncias partidárias de esquerda, que são extremamente machistas também. Então essa minha afirmação não é nenhuma ode, não estou dando a entender que os partidos de esquerda são feministas. Não são. Não existe partido feminista.
JC - O que o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) tem a ver com tudo isso?
Patrícia - Tem tudo a ver com tudo isso. O Brasil é o país que mais assassina defensores de direitos humanos. O Brasil é um dos países no mundo com maior índice de feminicídios. O Brasil é esse país que é extremamente racista, em que 70% das pessoas que são assassinadas são negras. O Brasil é esse país em que 9,9% do Parlamento é mulher. Aí você pega a Marielle Franco, uma mulher negra, periférica, que trabalhava com direitos humanos... Ela intersecciona quase todas as violências que existem no nosso País, e a morte dela é para além disso.
JC - Simbolicamente, o assassinato de Marielle pode ser visto como um contra-ataque, um backlash, à pressão para a presença desses cidadãos na política representativa? E, por outro lado, isso pode gerar uma reação que reflita nas próximas eleições?
Patrícia - É difícil responder essa pergunta. A professora Flávia Birolli, da UnB (Universidade de Brasília), escreveu, há um ano, sobre o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), como um backlash. O assassinato da Marielle também pode ser visto como um backlash, assim como o impeachment da Dilma. Só que ela (Marielle) não foi retirada do cargo dela, foi assassinada. (Mas) não sou tão otimista a ponto de achar que esses mártires tenham um reflexo direto nas eleições, por exemplo. A morte dela vai ter uma função fortíssima, para colocar a gente para refletir sobre machismo, racismo, conservadorismo político, mas não a ponto de haver um impacto nas próximas eleições, porque o cenário político atual é altamente conservador.

Perfil

Patrícia Rangel é doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) com missão de estudos na Universidad Nacional de General Sarmiento (Argentina); possui mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (antigo Iuperj) e graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É bolsista de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), realizando sua pesquisa no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), junto ao projeto "50 anos de feminismo: Brasil, Argentina e Chile". Atualmente, desenvolve também Estágio de Pesquisa no Exterior no Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin, com projeto intitulado "Can feminism belong to the state? Reflections on state feminism and feminist institutionalism". Tem experiência nas áreas de estudos de gênero, eleições, representação e participação política, feminismos e América do Sul.