Frutas nativas tentam recuperar mercado

Originárias da Região Sul, frutos esquecidos voltam a despertar interesse de produtores gaúchos

Por Guilherme Daroit

Uvaia
Elas têm gosto de passado, mas podem ser alternativas para o futuro. Por muito tempo esquecidas nos quintais dos fundos, as frutas nativas do Sul do Brasil voltaram à luz com novos hábitos de consumo da população e com a constante busca por novas fontes de renda aos pequenos produtores. Ainda praticamente extrativas, essas culturas, aos poucos, começam a se desenvolver, dando seus primeiros passos em cultivo, processamento e comercialização, e buscando recuperar o terreno perdido ao longo dos anos.
Constatar o relativo abandono das frutas originárias da região não é das tarefas mais difíceis. De certa forma, basta mencionar espécies como pitanga, butiá, araçá, guabiroba (também conhecida por gabiroba), guabiju, jabuticaba e uvaia em grupos de diferentes faixas etárias, especialmente nas grandes cidades. É muito mais factível que os nomes façam sentido entre os mais velhos do que entre adolescentes urbanos, por exemplo, que, com o distanciamento do campo, perderam também a relação com os frutos dessas árvores, que, fora da rota comercial, resistiram de maneira quase autônoma no interior do Rio Grande do Sul.
Há algum tempo, porém, trabalhos de pesquisa e de conscientização vêm sendo feitos no Estado para intensificar o uso dessas plantas locais. Desde 2002, por exemplo, o Centro de Tecnologias Alternativas Populares (Cetap), de Passo Fundo, atua na valorização da biodiversidade nativa, com foco especial nas espécies frutíferas. Técnico da entidade e coordenador dos esforços com as plantas regionais, Alvir Longhi lista desde o plantio e sistemas agroflorestais até questões de processamento e comercialização entre os objetivos do projeto.
Mesmo passadas quase duas décadas, entretanto, Longhi conta, ainda, encontrar um conjunto de dificuldades para o desenvolvimento das culturas. Um dos limites ainda reside na própria sensibilização, tanto de produtores, que precisam ver potencial nas culturas, quanto entre os consumidores. "Boa parte das espécies, no senso comum, é vista, ainda, como algo que não tem valor, que não tem importância", argumenta Longhi.
Transformações no consumo de alimentos, ainda que lentas, porém, são um alento. "Existem algumas tendências, entre elas, a valorização da produção local e também do alimento local", comenta o analista da Embrapa Clima Temperado, Daniel Aquini, que coordena o Arranjo Produtivo Local (APL) de Alimentos da Região Sul, com sede em Pelotas. Segundo o analista, o avanço, nesse sentido, de outras regiões do País - em especial, a Amazônia e o Cerrado, com a transformação de frutos como açaí e pequi em uma série de produtos - mostra o potencial para as frutas nativas.
Ainda em 2010, sem nenhuma agroindústria que utilizasse frutas nativas, a Metade Sul do Estado foi palco do projeto Sabor Nativo, que buscava a valorização das espécies locais e uma rede de troca de insumos entre os produtores. Mais à frente, um lote experimental de produtos processados a partir de frutas nativas foi colocado no mercado, esgotando em apenas dois meses.
"Hoje, diversas agroindústrias do APL utilizam essa matéria-prima. É um processo que vem se desenvolvendo ao longo do tempo e deve continuar se aprofundando", projeta Aquini, que vê espaço para que as plantas locais superem até o papel de um nicho de mercado, buscando, no futuro, até mesmo fatias do mercado convencional.
Para que chegue lá, entretanto, Longhi argumenta que o principal entrave é a criação de uma estrutura logística e de processamento que consiga atender à demanda, já que, em geral, essas frutas, in natura, têm vida muito curta. "Hoje, é a parte mais frágil. Sem isso, o potencial de consumo não é atingido", acrescenta o técnico do Cetap.
A ponta da produção também não preocupa Longhi, já que muitas pequenas propriedades no Estado possuem árvores de algumas das espécies subaproveitadas. "Parece que produção é só o que a gente planta, mas qualquer propriedade rural com potreiro, com campos, pode ter uma grande quantidade dessas frutas sendo perdida", conta Longhi.
Geralmente, aliás, as árvores se estabelecem em áreas de reserva legal ou impróprias para outros cultivos, fazendo com que terrenos que muitos veem como empecilhos se tornem fonte de renda para os agricultores, evitando, também, que sejam alterados. Já há, segundo Longhi, também produtores que investem na plantação de espécies nativas. Esses pomares, porém, ainda estão em fase de maturação, pois as plantas levam cerca de cinco anos para darem frutos.

Picolés e sorvetes abrem as portas para entrada no varejo

Com o forte apelo pelo local, também as relações de troca das frutas nativas acabam acontecendo em ambientes de proximidade - primordialmente, em feiras realizadas nas regiões produtoras, ou direto com os agricultores. Até mesmo os produtos derivados dessas frutas, como geleias e tortas, costumam ser vendidos nesses ambientes. O varejo ainda não é uma realidade, mas já há iniciativas começando a explorar a rota comercial mais comum. Uma porta de entrada escolhida foi o picolé, de certa forma também inspirado em redes consolidadas que propagam frutas do Cerrado e da Amazônia.
Ligada ao trabalho realizado pelo Centro de Tecnologias Alternativas Populares (Cetap), a responsável pela produção é a agroindústria Encontro de Sabores, de Passo Fundo, que, desde 2007, trabalha com derivados de espécies locais, fazendo tortas, bolos e polpas congeladas. Essas últimas, aliás, há algum tempo, já têm como destino sorveterias e restaurantes, mas foram os picolés que marcaram a industrialização da empresa.
Quando começou, a encontro tentou utilizar uma grande gama de espécies nativas, mas, com o tempo, teve de se dedicar a apenas sete (butiá, guabiroba, araçá, uvaia, jabuticaba, bergamota e pinhão). O problema é conseguir maquinário para frutas tão distintas. "Essas são todas parecidas, têm boa polpa e caroço grande. As outras - como cereja-do-rio-grande, pitanga e guabiju - têm mais semente, e não existe equipamento que consiga processá-las", justifica a diretora Lídia da Rocha Figueiró, que comemora o sucesso dos produtos em feiras e no seu - até agora - único ponto de venda, o Armazém Santo Verde, na Capital. A produção não é maior, segundo Lídia, porque a estrutura de congelamento da empresa não suporta toda a oferta de frutas.
Na Capital, os proprietários do estabelecimento voltado a produtos orgânicos e de agricultura familiar não titubearam quando receberam a informação sobre os picolés. Na estreia, em um sábado chuvoso de primavera, foram vendidos 60, superando as expectativas, segundo uma das sócias, Maira Gil. "Agora, compramos de 500 em 500", brinca.
Os picolés de maior saída, comenta, são os de frutas como jabuticaba, bergamota e açaí juçara (fruto da palmeira conhecida pelo palmito, encontrado no Litoral Norte), de sabor mais conhecido. Araçá e butiá, por outro lado, são as preferências dos mais velhos, saudosos do gosto da infância. "O procedimento padrão é, na primeira vez, pedir um de cada, e, depois, a pessoa estabelece suas preferências", conta Maira. Parte da proposta do produto é encontrar um preço de equilíbrio, bom para produtor e consumidor - cada sorvete sai por R$ 5,50.
É perceptível, inclusive entre as crianças, segundo Maira, o papel como divulgador das frutas nativas. "Comem o picolé, depois querem conhecer a fruta. Assim como tem gente que vem do outro lado da cidade só pelo picolé, e, depois, começa a consumir outros alimentos que vendemos", acrescenta a proprietária. Seu sócio, Maurício Damasceno, lembra que conseguir as frutas in natura ainda é difícil pela curta duração dos alimentos. "Se processa a fruta para não perder ela. Além disso, são frutos com produção muito limitada", argumenta Damasceno.

Pesquisa atua em propagação e seleção de espécies

Se, no campo e no comércio, a cultura das frutas nativas ainda busca seu espaço, no lado da pesquisa, o cenário é, de certa forma, parecido. O desenvolvimento das espécies no País não se encontra no mesmo estágio de outras variedades frutíferas, que possuem programas de melhoramento genético e insumos específicos, por exemplo. Não significa, porém, que não exista. Inclusive cultivares de algumas das frutas - como araçá, pitanga e feijoa (também conhecida como goiaba-serrana) - já foram lançadas no Brasil.
"O que temos feito, atualmente, é, das melhores plantas, procurar tirar as sementes, diferente do melhoramento que há, por exemplo, no pêssego", conta Rodrigo Cezar Franzon, pesquisador da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, um dos centros de referência no trabalho com frutas nativas no Brasil. Uma das dificuldades encontradas é o fato, justamente, de serem plantas rústicas, que nunca foram modificadas.
Foi a própria unidade de Pelotas da Embrapa a responsável pelo lançamento, na década de 1990, de dois cultivares de araçá: um amarelo, batizado de Ya-ci; e outro vermelho, batizado de Irapuã. Segundo Franzon, elas se propagam facilmente e se adaptam a diversas situações de clima e solo. "Temos informações de que foram levadas para outros países, inclusive se tornaram um problema no Havaí", relata o pesquisador. Por aqui, porém, não tiveram grande adesão de agricultores, embora tenham despertado interesse no início. Segundo Franzon, até pouco tempo atrás, as cultivares não eram registradas no Ministério da Agricultura, o que impedia viveiristas de produzirem e venderem mudas.
Já o cultivar de pitanga, batizada de Tropicana, foi lançado pelo Instituto Agronômico de Pernambuco. Embora haja cultivo comercial da fruta naquele estado e na Bahia, Franzon argumenta não haver experiências quanto à adaptação do cultivar no Rio Grande do Sul. O pesquisador conta que há, no horizonte da Embrapa, o lançamento de novos cultivares das duas espécies, mas sem um calendário definido.
Além disso, entretanto, o cultivo comercial no Estado dessas e de outras espécies nativas também dependerá de outras situações. Uma delas, segundo Franzon, é que todas sofrem com pragas como a mosca das frutas, o que pode até não ser um problema quando as plantas se encontram dispersas em meio à mata, mas se torna pior para o cultivo de áreas extensas com várias árvores da mesma espécie. Além disso, não há também, hoje, defensivos legalizados. Como são culturas muito incipientes, com um número ínfimo de produtores comerciais, não há incentivo às empresas quanto ao registro de produtos, cuja legalização precisa ser feita variedade por variedade. "Essa questão, na minha opinião, é, hoje, o principal fator limitante do cultivo dessas espécies", defende Franzon.

Quase anônima por aqui, feijoa ganhou o mundo

Ainda que sejam consideradas nativas no Rio Grande do Sul, grande parte das espécies são, na verdade, originárias de terrenos maiores. Pitanga, jabuticaba e araçá, por exemplo, ocorrem em diversas regiões do Brasil. Há algumas, entretanto, mais restritas, como a feijoa, limitada a regiões mais frias no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Uruguai. Quase anônima por aqui, onde é mais conhecida como goiaba-serrana, essa planta se espalhou pelo mundo, em especial na Colômbia e na Nova Zelândia, onde se transformou em uma cultura comercial.
A consolidação da fruta nestes outros mercados, onde passa inclusive por processos de melhoramento genético, é uma mostra de potencial da feijoa. O pesquisador da Embrapa Clima Temperado, Rodrigo Cezar Franzon, comenta que ela é utilizada, além do consumo in natura e desidratada, em diversos subprodutos, como licores e vinagre, por exemplo.
"Há, ainda, outro detalhe que pode ser explorado: as pétalas da flor são comestíveis e podem ser usadas para decoração de pratos", comenta Franzon, que conta que há uma produção da fruta sendo iniciada no Uruguai.
No Brasil, o trabalho com a espécie é desenvolvido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), que, desde a década de 1990, incentiva a produção de feijoa. A empresa chegou a lançar quatro cultivares da espécie em 2006 e 2007. "O principal problema não é ter cultivares, temos esses que são bons. Estamos trabalhando no conhecimento geral, que é ter a tecnologia para trabalhar com esses cultivares", conta Marlise Nara Ciotta, pesquisadora da Epagri em São Joaquim (SC), município na divisa com Bom Jesus, unidade que concentra os estudos com a planta.
Mesmo com todos os esforços, a maior dificuldade, diz, é aumentar o número de produtores. Na região de São Joaquim, por exemplo, são menos de 10. Além de não existirem viveiristas, técnicas de manejo também não são de conhecimento dos agricultores da região, onde a cultura da maçã é mais difundida.