Ignorando a crise que assola o setor naval, o Conselho Diretor do Fundo de Marinha Mercante (Cdfmm) aprovou, nos últimos meses, quase R$ 3 bilhões para a construção de novos estaleiros. Os projetos são destinados a reparos de navios de médio e grande porte e não envolvem a construção de embarcações - segmento que atualmente enfrenta um colapso por falta de encomendas.
O questionamento que alguns especialistas fazem é se os estaleiros que hoje estão parados não poderiam ser aproveitados também para fazer reparos. O Ministério dos Transportes, que administra o Fundo de Marinha Mercante (FMM), argumenta que são dois negócios distintos e que a mudança do perfil do estaleiro não é algo simples. Segundo o órgão, os estaleiros de reparos no Brasil apenas comportam pequenas embarcações, uma vez que a infraestrutura é limitada, com baixa profundidade do canal de acesso marítimo e restrição no tamanho do cais.
Um dos principais projetos aprovados pelo Cdfmm deverá ser construído na Paraíba, na cidade de Lucena, e deverá custar R$ 2,8 bilhões, com R$ 2,15 bilhões financiados pelo fundo. A ideia é fazer reparos para embarcações de toda a América do Sul. Segundo o Ministério dos Transportes, hoje os reparos em boa parte da frota brasileira são feitos no exterior, principalmente em Portugal ou na Ásia.
Apesar disso, especialistas questionam a demanda desse tipo de serviço para sustentar um projeto desse porte. "A frota nacional é pequena, e não sei se é suficiente", afirma o professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Rui Carlos Botter, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica. Segundo ele, um estaleiro de reparos precisa de um dique seco (onde é iniciada a construção do navio) e de guindastes, os famosos pórticos gigantes.
Os estaleiros de construção de embarcações, que estão parados, têm isso, a exemplo do Estaleiro Rio Grande (RS) e do Enseada Paraguaçu (BA). Sem encomendas, o Estaleiro Mauá, no Rio de Janeiro, já seguiu esse caminho e tem feito reparos de embarcações menores. A atividade, porém, é menos rentável do que a construção. "Mas qualquer negócio é melhor do que não fazer nada. Pelo menos ajuda a fechar a conta", diz o secretário-geral do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore, Sergio Leal.
Brasil tem atualmente 12 estaleiros parados - alguns em recuperação judicial e extrajudicial - sem encomendas. Especialistas dizem que alguns estaleiros poderiam migrar a atividade principal, mas precisariam de recurso novo. O problema é que parte dessa indústria tem como sócias empresas envolvidas na Operação Lava Jato, que investiga corrupção em contratos da Petrobras. Nessa situação, o governo não liberaria mais recursos.
"Eles também não têm como pleitear novos financiamentos com o governo", afirma uma fonte em Brasília. Todos eles tiveram recursos do FMM, cuja receita tem várias origens, sendo uma delas o Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante. De 2007 para cá, o fundo liberou cerca de R$ 45 bilhões para o setor.
O Ministério dos Transportes afirma que, apesar da aprovação dos projetos dos estaleiros pelo conselho diretor do fundo, a liberação dos recursos só é feita após a avaliação da viabilidade econômica do empreendimento pelos bancos.
O fundo tem como agente financeiro o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) e os demais bancos oficiais do País. Em um empréstimo, esclarece o ministério, o risco de inadimplência é do banco. É ele o responsável por verificar a capacidade de pagamento do investidor e a qualidade das garantias necessárias ao empréstimo.
Rio Grande vive fim de era de prosperidade e sofre com a derrocada
Imenso pórtico do Estaleiro Rio Grande, que já foi símbolo de progresso do município, se transformou em um retrato dos prejuízos e do desemprego que assolam a cidade portuária
ANTONIO PAZ/ANTONIO PAZ/ARQUIVO/JC
Instalado à beira da Lagoa dos Patos, o pórtico gigante, trazido da Finlândia, era o símbolo da prosperidade do município de Rio Grande (RS). Com 117 metros de altura e 210 metros de largura, o equipamento - pintado de um amarelo berrante - era visto de qualquer canto da cidade, que fervilhava com o polo naval e seus três estaleiros. Hoje, o pórtico, que custou cerca de R$ 400 milhões, está parado ao lado de milhares de toneladas de aço no Estaleiro Rio Grande (ERG).
De símbolo de bonança, o equipamento virou o retrato dos prejuízos que o setor causou na cidade. Em 9 de dezembro do ano passado, o ERG - que tem como sócios a Engevix e o Funcef - teve seus contratos rescindidos com a Petrobras e demitiu cerca de 3 mil funcionários de uma só vez. Em seguida, entrou com pedido de recuperação judicial para equacionar uma dívida de R$ 7,5 bilhões. Nem deu tempo de terminar o casco da P-71, que ficou pela metade.
A derrocada do estaleiro teve efeito imediato na economia da cidade. Empresários que investiram na expansão dos negócios estão endividados e sem dinheiro para honrar os compromissos firmados; trabalhadores perderam o emprego e não têm perspectivas de recolocação no mercado; e o índice de criminalidade cresceu. "O retrato do que se vê aqui é de um impacto social violento e de uma retração do desenvolvimento da região", afirma o prefeito de Rio Grande, Alexandre Duarte Lindenmeyer.
No auge da construção de embarcações, os três estaleiros do polo naval - Rio Grande, QGI (Queiroz Galvão Iesa) e EBR (Estaleiros do Brasil) - empregavam cerca de 24 mil trabalhadores e giravam uma economia que crescia em torno de 20% ao ano. Além do ERG parado, os outros dois também seguem o mesmo caminho. O QGI tem mais dois meses de trabalho e o EBR vai até o fim deste ano. Se nada for feito, outros cerca de 4 mil funcionários serão demitidos e vão engrossar a lista de desempregados na cidade.
O efeito multiplicador do polo naval funciona para o bem e para o mal. Com a queda na demanda, os empresários locais também passaram a demitir. O empresário Luiz Carlos Hilário conta que ampliou a rede hoteleira para atender à demanda do polo e agora tem alta capacidade ociosa. "Dependendo do mês, a ocupação fica entre 30% e 40%. No auge dos estaleiros, tinha 98%", diz ele, que é dono de quatro hotéis em Rio Grande. "Em toda a cidade, 10% do comércio fechou as portas", afirmou o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas, Luiz Carlos Teixeira Zanetti. Ele próprio fechou uma de suas três lojas de material de construção.
Em colapso, indústria já demitiu quase 50 mil e acumula uma dívida bilionária
Metalúrgicos demitidos em todo o País recorreram a protestos públicos
JOSE LUCENA/JOSE LUCENA/FUTURA PRESS/FOLHAPRESS/JC
Símbolo de um Brasil que dava certo e atraía investimentos bilionários, o setor naval entrou em colapso. De um conjunto de 40 estaleiros instalados no País, 12 estão parados, e o restante opera abaixo da capacidade. Sem encomendas, com o caixa debilitado e, em alguns casos, com sócios envolvidos na Operação Lava Jato, cinco estaleiros entraram em recuperação judicial. Dos tempos de euforia sobraram a dívida bilionária e quase 50 mil trabalhadores demitidos, segundo o Sindicato Nacional da Indústria Naval (Sinaval).
Entre os estaleiros em operação, uma parte é voltada para a construção de embarcações fluviais, como barcaças, ou de transporte de passageiros, como os catamarãs comuns no Norte do País. A indústria voltada para a construção de plataformas e navios offshore, que nasceu para atender às demandas da Petrobras, está em contagem regressiva com os últimos projetos em fase final de construção. Alguns grandes estaleiros têm pouco mais de dois meses de trabalho e depois podem engrossar a lista de estabelecimentos parados.
A euforia com os estaleiros começou no governo Lula com a descoberta do pré-sal. A partir daí, começaram os projetos em todo o litoral brasileiro, uma grande notícia para o governo, que queria gerar emprego e turbinar a economia. Para quem aceitasse o maior percentual de conteúdo local, o governo financiava até 90% do projeto. De 2007 para cá, em torno de R$ 45 bilhões foram desembolsados do Fundo de Marinha Mercante (FMM) por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes, de bancos públicos e privados.
Até 2014, a política do governo se mostrava positiva, apesar de atrasos na entrega de projetos. A essa altura, o setor empregava 82 mil pessoas e desenvolvia uma enorme cadeia produtiva. Mas, com a Operação Lava Jato, que atingiu em cheio a Petrobras, a queda no preço do petróleo e a derrocada da Sete Brasil, empresa responsável pela contratação de navios para a estatal, a indústria naval brasileira desmoronou com uma sequência de cancelamentos de encomendas de embarcações. "Foi a tempestade perfeita", afirma André Carvalho, da Veirano Advogados. Para complicar a situação, a Petrobras fez um pedido à agência reguladora do setor (ANP) para reduzir os percentuais de conteúdo local na plataforma para o Campo de Libra, alegando que o produto no País é 40% mais caro.
"Os investimentos foram feitos baseados na política de conteúdo local. A eliminação seria muito complicada", afirma Rodrigo Mattos, diretor da Alvarez & Marsal (A&M). A crítica é de que a crise veio quando a curva de aprendizado estava crescendo, com milhões de reais investidos em treinamento de pessoal. "Pior. A crise pegou alguns estaleiros ainda na curva de investimentos", diz o presidente da A&M, Marcelo Gomes. É o caso, por exemplo, do Enseada Paraguaçu, que tem como sócia as empreiteiras Odebrecht, OAS e UTC, envolvidas na Lava Jato, além da japonesa Kawasaki.
Com 82% das obras concluídas, o estaleiro, parado, está em recuperação extrajudicial. A solução tem sido buscar novas atividades para a área. O presidente da empresa, Fernando Barbosa, afirma que analisa a criação de um polo industrial e logístico. Outros estaleiros também buscam reestruturar suas atividades, como o Inhaúma (RJ). No caso do Estaleiro Rio Grande, também em recuperação judicial, a solução em estudo é criar uma unidade produtiva isolada e vender em leilão a parte que inclui todos os equipamentos.