Convidado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o professor catedrático Licínio Lima, da Universidade do Minho, em Portugal, ministrou a aula inaugural do curso "Gestão democrática: da avaliação ao planejamento participativo nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul", ontem, no auditório Araújo Vianna, na Capital. Defensor de uma democracia escolar participativa, o docente conversou com o Jornal do Comércio sobre as dificuldades de estabelecer uma democracia escolar e sobre a importância da participação popular nesse processo.
Jornal do Comércio - Por que é tão difícil democratizar as escolas?
Licínio Lima - Em primeiro lugar, a escola não foi inventada para ser democrática. De certa forma, a escola nasce com o projeto de educar elites - educar alguns, não todos - e surge como uma organização hierarquizada, com relações de poder assimétricas. Tradicionalmente, coloca professor e aluno em planos diferenciados. Claro que democratiza o acesso à cultura, ao conhecimento, mas apenas em certos setores reduzidos da população. As sociedades democráticas usam, como instrumento de educação, uma escola cujo modelo tradicional não foi pensado para ser democrático. Temos uma organização incompatível e incoerente com uma sociedade democrática e com políticas públicas que querem assegurar igualdade de acesso a oportunidades de educação, permanência de alunos na escola e, mais difícil, sucesso educativo. É preciso democratizar as estruturas organizacionais da escola. Não se pode chegar lá por meio de uma organização estruturalmente pouco democrática, autocrática, autoritária. Mas há dificuldades em fazer isso. As escolas se especializaram e se tornaram particularmente capazes de educar poucos e de selecionar socialmente.
JC - Como as escolas podem se organizar para alcançar esse ideal democrático?
Lima - Por meio da descentralização e da democratização da administração e do governo. Que concedam mais autonomia às escolas, aos alunos, aos pais, à comunidade. Não posso assegurar uma educação democrática por meio de velhas estruturas. O que deve mudar é o conteúdo político, o processo de produção da política, que precisa ser mais participativo, mais debatido socialmente. A administração também não pode ficar concentrada na prefeitura, nas secretarias de Educação. A escola não reproduz mecanicamente as políticas públicas. Isso é uma ilusão dos políticos, dos legisladores, que acreditam que o que é posto na letra da lei vira realidade amanhã ou depois. Nada funciona assim. É mais fácil mudar a lei do que mudar práticas educativas e pedagógicas seculares. Não defendo a autonomia da escola face aos poderes públicos, seria uma escola privada, uma empresa. Falamos da escola pública, integrada a uma rede pública. Em um contexto em que os entes federados possuem obrigações, elas precisam ser concretizadas. A política e o governo não podem ser definidos de cima para baixo. A educação é demasiado complexa para mudar com golpes legislativos. Só o legislador acredita que cria o mundo de novo por meio de decretos.
JC - No ano passado, diversas escolas foram ocupadas por alunos como forma de protesto contra decisões políticas. Até que ponto essa mescla é ideal?
Lima - Vejo isso como um aprendizado da democracia. Ela só existe quando praticada. Não se democratiza de uma vez por todas, então precisamos, para aprofundá-la e desenvolvê-la, exercitar a cidadania crítica, independentemente da razão de cada um. É interessante que alunos tomem posição a favor e contra, manifestando-se conforme as regras democráticas, com debate e diálogo. A democracia não é a ditadura da maioria, portanto, temos de respeitar as minorias. Vejo a política entrando na escola mediada pelos educadores e pela agenda educativa e pedagógica, não como projeto de doutrinação política. Mas ela entra, queiramos ou não. Não há educação que não seja política. Quando alguém fala de uma escola neutra, eu desconfio, porque, ao ser neutra, ela já está fazendo uma declaração política. Prefiro uma escola que assume o pluralismo de ideias.
JC - É possível ensinar democracia a uma criança, por exemplo?
Lima - Nossa pedagogia é altamente competitiva. O ensino está muito orientado à transmissão de conhecimentos considerados essenciais, na preparação para exames, porque é a partir deles que as escolas são avaliadas. A educação como bem comum, como contexto de solidariedade, de respeito às diferenças, não é considerada uma missão nobre. É claro que o conhecimento é central, mas uma escola que se concentra apenas nisso despreza uma parte fundamental da educação: aprender a respeitar, a discordar, a combater a ideia do outro. Se a escola não faz isso, quem vai fazer? A família? A família está cada vez mais ausente porque, seja como for composta, o indivíduo trabalha. Além disso, nem sempre é democrática. Para muitos alunos da classe popular, a escola será a organização mais democrática, mais participativa, mais respeitadora de direitos humanos, mais tolerante que encontrarão na vida. Não é a família, não é o emprego, não é a sociedade em geral. E se ensina isso praticando. É um processo longo, que não muda automaticamente, mas é o único processo possível, porque a educação é uma prática cultural, e a cultura não muda de repente.