É bem provável que se venha publicando Caio Fernando Abreu muito mais depois de sua morte do que durante sua vida. Certamente, se tem lido o autor muito mais hoje em dia do que ao tempo de sua vida. Há um mistério nos escritos de Caio de que, ao assistir ao espetáculo de Déborah Finocchiaro e Luís Arthur Nunes, me dei conta. Houve um tempo, até mais ou menos a Renascença, ou pouco depois dela, que a literatura era para ser lida em voz alta. A literatura era quase que um ofício público. Mas então surge a forma narrativa romanesca, a mulher começa a se alfabetizar, rompendo as proibições de ser uma leitora, e até mesmo um espaço específico para a sua leitura - e um móvel, para que ela se assentasse durante a leitura - surgiram nos ambientes das casas. E a literatura começou a ser lida em voz baixa, de maneira individual. E assim tem sido até hoje, salvo, em alguns casos muito específicos, em que o texto, embora escrito na intimidade e na solidão do gabinete do escritor, como que grita a plenos pulmões para ser lido em voz alta.
Caio Fernando Abreu, durante a maior parte de sua vida, de certo modo, foi obrigado a sussurrar e a expressar-se em voz baixa. Seus escritos, contudo, transformaram-se, para ele, no veículo de seu grito. Era através da literatura que Caio verdadeiramente se expressava. Daí que seus textos imploram para serem lidos em voz alta. Isso fica evidente a partir deste espetáculo de Luís Arthur Nunes/Deborah Finocchiaro. E daí o acerto e a imensa recepção que o espetáculo Caio do céu tem alcançado, nesta sua primeira semana de estreia, entre todos aqueles que o tem assistido e que, tocados pela emoção e a sensibilidade do escritor, concretizada na extraordinária interpretação de Deborah: o texto ganha vida, se completa - eu diria quase que o texto como que efetivamente (re)nasce quando ganha volume e movimento através da interpretação de Deborah Finocchiaro.
Há muitos modos de se dar vida a textos literários. A opção de Nunes e de Deborah foi inteligente e sensível: viajaram basicamente entre crônicas, poemas e alguma correspondência. Concentraram-se na produção mais recente, quero dizer, naquela produção surgida depois de o escritor saber da doença. Isso levou-o, de certo modo, a atravessas a fronteira entre o que se permitia dizer e o que calava. A partir daquele momento, Caio Fernando Abreu entendeu que não deveria calar nada mais. A escolha dos textos para a composição deste espetáculo parece seguir esta linha e, por isso, longe de ser um ritual de nostalgia e memória, é sobretudo um exercício de presentificação e de festejamento à vida. Observe-se, sobretudo, a parte final do espetáculo.
Deborah Finocchiaro está soberba. Reparte o palco com o músico Fernando Sessé que, obviamente, não é um ator, mas é seu (excelente) companheiro de viagem (plagiando uma passagem em que a atriz contracena com Marcelo Adams, em vídeo). O espetáculo, assim, de pouco mais de uma hora de duração, não se constitui em uma homenagem, mas em uma (re)descoberta, de modo que a palavra de Caio, através da fala de Deborah, reafirma sua força e ganha presença física, efetiva, junto à plateia que, por isso mesmo, se sente tocada e reage, emocionada.
Eis um espetáculo que tem todos os méritos, mas o maior deles é o equilíbrio. Nada está de mais, nada está de menos. E está tão introjetado pela equipe e, em especial, pela atriz, que mesmo quando o microfone falhou, sua voz afirmou-se junto ao público, sem nenhuma dificuldade.
O Porto Verão Alegre, em sua 18ª edição começou com o pé direito. Para quem não pode ou não puder assistir a este espetáculo agora, recomendo, vivamente, que o anote em sua agenda. Ele é simplesmente imperdível, porque é uma celebração à arte teatral e à sensibilidade. Mostra que ainda temos oportunidade de sermos humanos.