Um dos tópicos mais criticados do complexo sistema tributário brasileiro, a disparidade dos regulamentos estaduais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) está na mira do Senado Federal. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a nº 155/2015, tenta uniformizar as alíquotas do imposto, internas e interestadual, para todos os produtos que compõem a cesta básica. A medida possui apoio de contadores e empresas, que vislumbram a simplificação e, claro, um possível rebaixamento das taxas, mas encontra questionamentos por parte do poder público.
A PEC, protocolada em dezembro de 2015, propõe a alteração do artigo 155 da Constituição Federal, que trata dos impostos estaduais. O pedido é de inclusão de um novo parágrafo, que instituiria: "Para os produtos que compõem a cesta básica, definidos em lei complementar, as alíquotas do imposto serão: I - determinadas mediante deliberação dos Estados e Distrito Federal, nos termos do § 2º, XII, g; II - uniformes em todo o território nacional, podendo ser diferenciadas por produto".
A justificativa da proposta alega que o fato de cada unidade federativa poder determinar as alíquotas com os quais irá trabalhar gera uma variação entre as taxas e, consequentemente, nos preços das mercadorias entre os estados. "Não é razoável que o local onde a pessoa viva, em um mesmo país, defina a carga tributária dos produtos essenciais à sua manutenção e à de sua família", afirma o texto.
Autora da proposta, a senadora gaúcha Ana Amélia Lemos (PP) argumenta que a regulação de impostos por leis estaduais é o que gera a guerra fiscal, sustentando que a diferenciação feriria a isonomia tributária. A senadora defende, por outro lado, que a incidência de uma alíquota única sobre a cesta básica tem outro ponto, que é aumentar o poder de consumo da camada mais pobre. "São alimentos consumidos pelas famílias de baixa renda, que gastam mais de 93% de sua renda com despesas de consumo, e que têm a alimentação como quase 30% das despesas familiares", defende Ana Amélia, assegurando que uma redução nos tributos seria repassada ao preço final dos alimentos.
O projeto, desde o início, recebeu apoio de diversas associações de produtores rurais e da indústria alimentícia, mas caminha a passos curtos no Senado. Após um ano e meio na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a proposta recebeu um aval positivo do relator designado, senador Ivo Cassol (PP-RO), mas, há um ano, não registra novo trâmite.
A situação, inclusive, não deve mudar até o fim de 2018. Isso porque, por conta da intervenção federal no Rio de Janeiro, o Congresso Nacional paralisou a tramitação de todas as PECs em discussão - cerca de 190, segundo o Senado - sob o argumento de que não pode ter mudança na Constituição enquanto houver intervenção federal. "Como essa intervenção tem um período de duração (até o fim de 2018), espero que, assim que seja levantada, possamos agilizar a matéria", projeta Ana Amélia. A senadora lembra, porém, que o processo pode demorar. Embora o relatório já tenha sido apreciado, as PECs exigem quórum especial nas comissões e votação em dois turnos no plenário para que se consolidem.
Indústria alimentícia aguarda redução nos impostos
A maior parte do apoio ao projeto vem, evidentemente, da indústria de alimentos, cujos produtos seriam diretamente afetados pela medida. A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), por exemplo, se manifestou favoravelmente à PEC no Congresso, mas encaminhou outras sugestões ao texto. Um dos pontos que levantam maiores dúvidas é o fato de que, atualmente, a legislação sobre a composição da cesta básica não é clara.
Organizador da principal pesquisa sobre o custo do conjunto, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) utiliza como base para o levantamento o decreto - nunca revogado e assinado por Getúlio Vargas em 1938 - que instituiu o salário-mínimo no Brasil. No documento, há quatro conjuntos distintos, divididos por regiões do País.
Apesar disso, os estados também legislaram sobre cestas básicas próprias. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o conjunto está descrito dentro do próprio regulamento do ICMS, e inclui produtos como chá, cebola, biscoitos, conservas e erva-mate, entre outros, que não constam no decreto nacional.
Por conta disso, a Abia propôs que uma Lei Complementar estabelecesse uma cesta básica nacional comum, com a previsão de que os estados possam incluir outros alimentos à lista por conta de suas peculiaridades. O setor alimentício ainda aproveita a discussão para emplacar, junto à uniformização, uma redução nos impostos.
Há um projeto de lei em discussão na Câmara (de número 8.296/17), inclusive, que busca eliminar impostos e taxas sobre os produtos do conjunto. Mesmo dentro da PEC 155/2015, embora o texto original nada diga sobre o percentual da alíquota única, que teria de ser acertada entre os estados, a discussão caminha para uma padronização em torno de 4%.
O argumento da indústria é de que, desde 2012, quando foi publicada a Resolução do Senado federal nº 13, a alíquota interestadual de ICMS para produtos importados foi rebaixada para 4%. A justificativa, à época, era acabar com a chamada "guerra dos portos", em que os estados ofereciam benefícios para atrair importadores. Já tramita no Senado, também, proposta para revogar essa alíquota, mas ela serve de base para a reclamação.
"Defendemos que esse patamar (4%) seja o máximo. A alíquota não pode ser superior à dos importados, seria injusto para o produtor, para toda cadeia produtiva", argumenta o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Arroz (Abiarroz), Elton Doeler. O setor orizícola, cujo produto encontra-se em todas os conjuntos mínimos vigentes no Brasil, é um dos mais atuantes quanto à mudança nas alíquotas da cesta básica.
Além da isenção aos produtos essenciais, a Abia propõe que todos os alimentos sejam tributados na menor alíquota existente, justificando a proposta com os patamares internacionais de impostos sobre alimentos e com a liberdade de escolha dos indivíduos. "O objetivo dessa sugestão é, em se tratando de alimentos, garantir que a população tenha acesso a produtos diferenciados com a menor carga tributária possível, independentemente da sua maior ou menor capacidade contributiva, já que essa condição não é determinante dos desejos e vontades do ser humano, ao menos em se tratando de alimentação", defende, em nota, a Abia.
Simplificação é vista como ponto favorável
Mesmo que as alíquotas não caiam, porém, o simples fato de eliminar as discrepâncias entre os estados por conta dos diversos regulamentos do ICMS já é visto como um ponto positivo da PEC 155/2015. Atualmente, no que tange à cesta básica, o Convênio ICMS nº 128/94, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), permite aos estados rebaixarem as alíquotas dos alimentos essenciais até um mínimo de 7%. O acordo, porém, é autorizativo, não obrigatório - o Rio Grande do Sul é um dos estados que aderem à medida.
"Uma empresa que vende a nível nacional, para cada nota emitida, tem que ter um estudo daquele estado para onde está vendendo. É uma insanidade fiscal", reclama o presidente da Abiarroz, Elton Doeler. Entre os contadores, a queixa é a mesma: "Precisamos entender 27 formas de se apurar o ICMS sobre um produto", agrega o vice-presidente de desenvolvimento profissional do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul (CRCRS), Márcio Schuch Silveira. A crítica não é apenas sobre a quantidade de regulamentos, mas também sobre os problemas causados por ela, especialmente a insegurança, ainda mais quando envolve normas de substituição tributária.
"São totalmente contraditórias. Aqui tem que sair de um jeito; e, na entrada em outro estado, o entendimento é outro. No trânsito, pode ser autuado, é comum acontecer. Gera também esse custo", continua Silveira, argumentando que alguns estados chegam a adotar regramentos, às vezes, até em conflito com o que é permitido.
Silveira ainda prevê que, caso aprovada, a PEC 155/2015 possa abrir a porta para que a uniformização de alíquotas do ICMS se espraie por outras categorias de produtos. "Pode começar por esse segmento com importância muito grande e quem sabe daí venha um processo de simplificação do ICMS, fundamental para a economia", projeta o vice-presidente do CRCRS.
Além de facilitar os cálculos, contudo, a instituição de alíquotas únicas é vista com bons olhos pela indústria, por acabar também com a guerra fiscal. O presidente da Abiarroz, Elton Doeler, defende a iniciativa por conta do equilíbrio tributário para a indústria. "Queremos igualdade de condições, que nenhum mercado sofra injustiças tributárias. Se for igual no Brasil inteiro, quem tiver mais eficiência vai vender, quem não tiver, infelizmente, não vai", afirma Doeler. No caso do arroz, acrescenta o dirigente, moradores de estados diferentes estão pagando tributos diferentes, o que vê como um problema em se tratando de um "produto essencial" da alimentação brasileira.
No Estado, Receita estuda alternativas
Wunderlich lembra que alguns produtos já têm isenção de imposto
LUIZA PRADO/JC
As demandas da indústria não encontram eco, porém, no setor público. Pelo menos no caso do Rio Grande do Sul, que já oferece incentivos à produção dos alimentos da cesta básica tributados no ICMS em 7%, o entendimento é de que já há benefícios para a cadeia. Além disso, a Receita Estadual projeta que outras iniciativas em estudo possam ser mais efetivas quanto ao papel de tornar mais baratos os produtos para as famílias de baixa renda.
"Entendemos que a cesta básica já tem um caráter diferenciado no Estado. E, dada a situação financeira do Rio Grande do Sul, não seria o momento para uma nova redução", argumenta o subsecretário da Receita Estadual, Mario Luis Wunderlich dos Santos. O titular da instituição lembra que, para além da alíquota reduzida, há alguns produtos, como hortaliças, tomate e batata, por exemplo, que, na prática, são isentos do ICMS. A estimativa da Receita é de que, com todos os incentivos fiscais à cesta básica, o Estado abra mão de cerca deve R$ 300 milhões anuais.
No caso do arroz, que é o alimento do conjunto essencial no qual a produção gaúcha possui maior representatividade (o Estado produz 70% do cereal brasileiro), Santos ainda ressalta que, desde o ano passado, a indústria orizícola possui outras vantagens. Atendendo a pleito do setor, o Estado reduziu as alíquotas para saídas às regiões Sul e Sudeste para 7%, e, às demais, para 4%, benefícios que somariam cerca de R$ 50 milhões anuais. Além disso, insumos como fertilizantes e defensivos agrícolas também possuem isenção dentro do Estado. "Já é um setor que tem benefícios de baixa tributação. Entendemos que isso é o suficiente", afirma.
Já em relação ao barateamento dos alimentos para a população que mais precisa, a Receita entende que a redução das alíquotas não seja o melhor caminho. O argumento é de que, embora o peso no bolso seja proporcionalmente maior a quem ganha menos, esses alimentos são consumidos por toda a população. Ou seja, ainda que o benefício tenha como justificativa diminuir o preço para quem não pode pagar, acabaria reduzindo também para aqueles que tem capacidade contributiva.
A alternativa seria a criação do chamado ICMS personalizado. A ideia é de que o Estado elimine os benefícios fiscais. "Temos tecnologia para devolver o imposto a quem realmente precisa. Poderia se adotar alíquota de 18% para todos, e, pela tecnologia atual, devolver o valor para a pessoa de baixa renda", explica Santos.