Um espaço de dois metros quadrados. Nele, o consumidor coloca um óculos de realidade virtual e subitamente entra no mundo mágico de Harry Potter. Mergulha na experiência de percorrer o castelo de Hogwarts, vivendo situações semelhantes às enfrentadas pelo personagem imaginado por J. K. Rowling. Só que não é apenas entretenimento: a tecnologia recria eletronicamente um espaço de cerca de 2 mil metros quadrados, onde o que está em jogo também é um negócio. O fã da série transformado em cliente passa a ter à disposição uma loja virtual, na qual ele escolhe o produto licenciado da marca e a forma de pagar, além de definir como será a entrega. Mais do que um exercício de futurologia, o cenário permitido pela realidade virtual (RV) já é apontado por especialistas em varejo como uma possibilidade tecnológica que irá revolucionar o setor.
Apple, Google, Samsung, Sony e Facebook, entre outras gigantes, aliam-se a um exercício de startups em uma nova frente da batalha tecnológica da nova economia: a incorporação de aplicações para proporcionar experiências, aprimorar o relacionamento com clientes ou tornar a gestão dos negócios ainda mais eficiente. Além da RV, realidade aumentada (RA), machine learning (ML), data base analytics e inteligência artificial (IA) passam a integrar a lista de apostas. Alguns números indicam que o recurso da RV já não é apenas ficção: a consultoria Statista, especializada em estatísticas na internet, indica que o mercado mundial de realidade virtual chegará aos U$ 12,1 bilhões em 2018, com potencial para até mesmo triplicar até 2020, à medida que for sendo conhecido pelo público.
Aplicada ao varejo, a RV é revolucionária. Ainda que a tecnologia precise avançar, tornar-se mais amigável, o fato é que ela sacode o setor. De um lado, em um cenário em que as lojas tendem a ser cada vez menores, por conta do custo de locação ou pelo avanço do e-commerce, os equipamentos de RV ampliam a experiência imersiva de contato do consumidor com o estoque. De outro, é um alerta à possibilidade real de que a indústria possa criar canais de acesso direto ao cliente, contornando as lojas físicas e acelerando o fenômeno da desintermediação. "O processo de compra vai se transformar em algo banal, de um lado, e avançar para além da imaginação, de outro. Na hora em que você tem tudo isso disponível, os fabricantes podem ir direto ao consumidor", garante Marcos Gouvêa de Souza, diretor geral da GS& Gouvêa de Souza, uma das mais influentes consultorias em varejo do País.
Para o especialista, a RV é uma das técnicas que irá proporcionar ainda mais experiência e diferenciação ao varejo, enriquecendo o ambiente físico e tornando mais intensa a interação com as marcas. Em um primeiro momento, o custo para implantação ainda assusta as empresas, mas a tendência é de barateamento, o que pode levar à democratização. O mercado estima em R$ 50 mil o desenvolvimento de um projeto profissional na área. O mantra desta guinada tecnológica é o que Souza chama de simplificação sofisticada: interfaces e processos cada vez mais simples na aparência, no ponto de contato com o cliente, mas que por trás são movidos por um nível elevado de complexidade, a serviço do consumidor. "Mas não só para controlar ou para melhorar a rentabilidade. Faço ou vou perder o consumidor para outra alternativa que seja mais simples, mais direta, mais conveniente", alerta.
Reconhecida pela excelência em termos de reputação, a marca de cosméticos Natura montou no Parque Ibirapuera, em São Paulo, um espaço para simular a imersão na Floresta Amazônica, de onde saem matérias-primas para os seus produtos, com a participação dos ribeirinhos. A empresa se valeu de um vídeo em 360º para recriar eletronicamente a ambientação. Os exemplos não são novos. Em 2015, valendo-se da tecnologia Google Cardboard, a Renner fez a apresentação de sua coleção de outono-inverno daquele ano. O gadget usado era simples, produzido com papelão, mas também com o potencial de oferecer uma experiência de imersão. Enquanto a realidade virtual permite que se crie um universo imersivo, a realidade aumentada traz elementos do mundo virtual para o real. Como o catálogo da sueca Ikea, que oferece ao consumidor a oportunidade de simular como os seus produtos ficariam no ambiente que pretende ser renovado, bastando para isso percorrer o local com um celular ou um tablet.
Especialistas em análise de mercado apontam que a RV e a RA vão transformar a experiência dos clientes com as marcas e os ambientes de trabalho dentro das organizações. No ano passado, uma das maiores empresas globais de soluções inovadoras, a Avanade, detectou que a RA iria começar uma trajetória de afirmação. Para 2018, a tecnologia volta a integrar a lista de principais tendências projetadas. As experiências digitais em lojas físicas ou on-line, tanto com a RV quanto com a RA, estão sendo consideradas grandes parceiras do varejo, sinalizando que a tecnologia tende a se tornar onipresente ao consumidor. Uma pesquisa realizada pelo IDC aponta que até o ano de 2020, 40% das marcas vão proporcionar alguma experiência digital aos seus clientes. O Brasil não está fora do rota da inovação, apesar dos obstáculos do mercado nacional: a Cisco aponta que 67% dos varejistas brasileiros já investem para estarem preparados para o novo front digital.
Duas outras tendências apontadas pela Avanade se encaixam na revolução em curso. A primeira é que as tecnologias também serão usadas pelos departamentos de recursos humanos, com o objetivo de refinar a seleção e catapultar a produtividade dos colaboradores. A segunda está no avanço dos assistentes virtuais e de voz. A consultoria cita uma projeção feita pela Gartner, para quem os pioneiros neste tipo de recurso poderão obter um crescimento de 30% na receita de seus negócios até 2021. A inovação avança por todos os poros da empresa, produzindo uma massa enorme de informações, mas o desafio permanece: olhar os dados - lembrando que mais de 2,5 quintilhões de bytes são gerados diariamente - e extrair insights a partir deles, algo para o qual as organizações não estão tão preparadas, nem no Brasil, nem no mundo. O que torna promissora a opção pelo uso de inteligência artificial. "As empresas ainda precisam de estratégia para olhar os insights e transformar em resultado", afirma Caio Camargo, sócio-diretor da GS&UP.
Camargo entende que ainda há um clima de paralisia, com um baixo nível de investimento, como se todos estivessem esperando a tendência se concretizar organicamente. O problema da inércia, segundo o consultor, é o risco de perder o timing com o consumidor ou com o cliente, sempre mais exposto à sedução de novos formatos. No caso do varejo, a tecnologia está permitindo que as marcas transitem de modalidade: quem é on passa a ser off, e vice-versa. Um caso emblemático desta dança de suporte é o da AmazonGo. No centro de Seattle, nos Estados Unidos, a gigante do comércio virtual criou uma loja sem caixas. Cada cliente tem um QR que é escaneado ao entrar. Sem cestas, o consumidor pega os produtos que pretende levar e os coloca na sacola. Um sistema de leitura visual e pesagem identifica exatamente o que foi retirado da prateleira. Por trás do mecanismo engenhoso, que pode redefinir o varejo, há uma sólida estrutura de reconhecimento eletrônico de objetos e machine learning.
A leveza do modelo Amazon contrasta com setores mais tradicionais. Indústrias como a calçadista se movem para entrar em sintonia. De acordo com Roberta Ramos, diretora de projetos da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), o projeto Future Footware busca justamente acertar o passo do setor com o uso da tecnologia, com os novos modelos de negócios e com o comportamento do consumidor. A forma que a entidade encontrou de estimular a compreensão deste cenário tem sido a sensibilização e a ação com os demais elos da cadeia do calçado, com representantes das máquinas, do couro e dos complementos. "A nova economia não permite que a gente mude só um elo da cadeia", afirma Roberta, para quem a indústria padece de algum atraso porque se estruturou sem valorizar as marcas e ainda opera protegida da furiosa concorrência da China.
A ideia de criar uma espécie de fábrica virtual, no formato de um game interativo, surgiu justamente para despertar os calçadistas sobre o impacto da tecnologia. Conforme Roberta, o projeto ainda está em fase de desenvolvimento e de captação de financiamento em agências governamentais, mas a proposta é, tendo a gamificação como ferramenta, simular situações concretas da gestão da planta industrial, para que empresários possam observar o que acontece na linha de produção quando alguma decisão ligada à inovação for tomada. Assim, no ambiente virtual, quando uma determinada ação ocorre, o game projeta um resultado diferente, tornando didática a percepção da consequência. O projeto deverá ser lançado em 2019 e está sendo desenvolvido com os demais elos da cadeia do calçado.
A inteligência artificial (IA) e o machine learning (ML) também surgem no horizonte como um desdobramento natural da evolução tecnológica. Boa parte do potencial da IA vem justamente do fato de que a economia está estruturada em torno de produtos ou processos digitais. Ou seja, houve um crescimento exponencial das pegadas digitais, rastros que podem ser transformados em dados. Como a capacidade de processamento de informações ficou mais barata nos últimos 10 anos, cruzar dados para encontrar padrões e predizer comportamentos está muito mais fácil - e é basicamente isto o que a IA faz, claro que de uma maneira cada vez mais sofisticada. Para Ronaldo Aloise, da consultoria Way to Grow, de Porto Alegre, especializada no design de negócios, ocorre a partir deste fenômeno uma grande transferência de poder. Ele usa como exemplo o impacto da IA nos processos de análise de mercado, pois o uso do processamento avançado de dados identifica padrões mais complexos que os tradicionais, idade e sexo, por exemplo. "Uma análise de dados inteligente permite ver que características comuns que antes não eram perceptíveis. Isso vai fazer com que mude a estratégia de negócio de todo mundo", garante Aloise.
A diferença básica entre IA e ML está na capacidade de aprendizagem. Ambas mimetizam o comportamento humano, buscam correlações e padrões entre grandes massas de dados. A ML, no entanto, refere-se à capacidade do sistema de aprender com a operação, aprimorando sua resposta. A tecnologia disponível cruza informações entre os elos da produção e do consumo, processando, por exemplo, em uma ponta, dados visuais do olhar de um cliente diante de um produto em uma gôndola de um supermercado e, na outra, os ajustes na dosagem necessária de insumos em um pomar. Tal poder de interconexão gera desdobramentos éticos que precisam ser pesados, tanto a respeito da IA quanto da ML. Aloise enxerga o tema com otimismo. "Um sistema complexo reage rápido e aprende rápido com o próximo. Ninguém tem tempo suficiente para interferir no feedback do sistema. Como é um sistema baseado em feedback, ou entrega o que prometeu ou o sistema rejeita", avalia o especialista, o que garantiria até mesmo uma operação ética para as duas ferramentas baseadas em algoritmos.
Mas há aspectos negativos. O primeiro: com a automatização generalizada, o prazo de validade do conhecimento encurta. Como nem todas as empresas e pessoas têm energia para se manter em um ritmo frenético de aperfeiçoamento, ocorre uma concentração na mão de poucos dispostos a se manter sincronizados. O desdobramento natural e nocivo seria a concentração de renda ainda maior nas mãos destes personagens, por mais democrática que seja a ferramenta de análise de dados. "As grandes plataformas de comunicação e relacionamento vão de ter um poder financeiro absurdo", projeta. Um terceiro efeito remete ao computador Hal, do filme 2001: Uma odisseia no espaço. Como, segundo Aloise, os seres humanos têm um instinto de autoproteção aguçado, e os sistemas digitais são projetados por humanos, quem garante que em algum momento estes mecanismos inteligentes não possam aprender a capacidade de, em primeiro lugar, garantir a autopreservação quando diante de um dilema?
Como a IA basicamente funciona a partir de modelos matemáticos poderosos e de uma gigantesca capacidade de processamento, sua aplicação é ampla. Rodrigo Barros, sócio fundador da Teia, empresa que desenvolve soluções baseadas na tecnologia, lembra, por exemplo, o uso recente na resolução de problemas jurídicos com algoritmos de IA, que operam com mais precisão do que advogados humanos. É neste caminho que apostam as chamadas law-techs, as startups do mundo das leis. Outra aplicação pertinente, diante do quadro de insegurança vivido no Brasil: com a capacidade de reconhecer padrões em imagens, é possível criar sistemas de segurança que funcionam sem a intervenção humana, com a IA reconhecendo pessoas nas imagens, cruzando com bases de suspeitos e emitindo alertas, se necessário.
Neste momento a Teia está focada em projetos de reconhecimento facial. "Estamos trabalhando na parte de controle de acesso a locais restritos, com foco em pontos de grande circulação, como estádios de futebol", adianta Barros. A ideia é, em vez de utilizar mecanismos de biometria como impressão digital - que falha em muitos casos e é intrusivo e demorado -, recorrer ao reconhecimento facial. O usuário caminha em direção à catraca e é liberado automaticamente. A ferramenta é antiga, mas os últimos avanços em ML aperfeiçoaram a precisão e multiplicaram a capacidade de acerto do sistema. "Enquanto a biometria digital falha uma vez em 50 mil casos, o reconhecimento facial falha apenas uma vez em um milhão de casos", projeta Barros. Com os R$ 250 mil que ganhou ao ser selecionada por edital de inovação, a Teia conquistou a parceria da Samsung para aprimorar o produto.
Uma das aplicações mais promissoras está nos bots ou chatbots, os programas que usam IA e ML para conversar com o usuário de uma maneira estruturada. Há sistemas eficientes em até mesmo ouvir as reclamações por meio de um call center e, a partir do contato, identificar o sentimento do usuário pela voz. É neste mercado que está acreditando a Nama, de São Paulo, usando a tecnologia do processamento de linguagem natural (PNL) para desenvolver assistentes virtuais e chatbots. Segundo Marcello Batistella, diretor de vendas da empresa, estas ferramentas funcionam por meio de uma linguagem objetiva, gerando menos frustração nos clientes no que nos contatos humanos tradicionais. Ele enxerga que, de 2017 para 2018, houve um salto na busca das empresas por estas soluções. "Por ser uma tecnologia que traz benefícios muito rapidamente, gerou um burburinho. Permite vender mais e reduzir custos, deslocando funcionários para funções estratégicas", explica.
À medida que opera, a AI fica melhor, pois processa mais dados e a curva de aprendizagem é exponencial. O diferencial da Nama, conforme Batistella, é usar um sistema em português, que enriquece a resposta dos bots. A concorrência oferece uma base em inglês, o que produz discrepâncias no processo de tradução. Desenvolvido o sistema automatizado, o cliente da Nama pode escolher a plataforma na qual pretende plugar o bot, de acordo com a sua estratégia. Pode ser por Messenger, Telegram ou Skype. Tendo atendido clientes como Pão de Açúcar e Magazine Luiza, Batistella destaca o projeto Poupatempo, que automatiza o atendimento ao cidadão do estado de São Paulo. Quando o bot Poupinha foi lançado, cerca de 50% dos atendimentos eram finalizados com o agendamento concluído, para tirar segunda via de documentos, por exemplo. Oitenta dias depois de lançado, o percentual subiu para 70%. A explicação de Batistella elucida o poder da tecnologia: "a máquina aprendeu".