Nas memórias intactas do meu baú de guardados, lembro ainda a mais remota lembrança do Theatro São Pedro, eu criança acompanhando minha irmã menor em sua apresentação de dança espanhola naquele lugar mágico, a mãe preocupada que os filhos não caíssem na escada bamboleante que gerava insegurança nos adultos presentes à apresentação. Sim, testemunhei a decadência física da nossa mais nobre sala de espetáculos, sua degradação estrutural antes da reforma, sua morte anunciada. Por isso, ao longo dessas décadas que me separam desse dia inolvidável, com o teatro definitivamente recuperado e integrado à vida cultural do Rio Grande do Sul, não cansarei de tecer elogios e homenagens à dona Eva Sopher.
Mentora e guardiã da recuperação do Theatro São Pedro, dona Eva foi incansável. A dívida que temos com ela é gigantesca. Não só reabriu nosso principal teatro, mas cuidou de preservá-lo e dotá-lo dos mais requintados aparatos técnicos. Pisaram neste palco sagrado alguns dos nomes mais renomados do circuito das artes mundiais: Bob Wilson, Hanna Schygulla, Philip Glass, entre tantos, mostraram espetáculos de invulgar qualidade e tiveram a acolhida que grandes artistas esperam em suas apresentações. A nata do teatro nacional e do teatro local exibiu ali suas produções. Virou lugar comum, após as apresentações, os grupos agradecerem publicamente a acolhida de dona Eva.
Tenaz, resiliente, visionária, corajosa, teimosa, gestora integral: são incontáveis os adjetivos que, somados, determinam o perfil de uma das mais importantes figuras da vida cultural de toda a nossa História. Ao longo de seus longevos 94 anos, a lista de conquistas de dona Eva, em prol das artes gaúchas, é inigualável. Nenhum outro nome agrega inventário tão profícuo e consistente. Seus atos sempre visaram consolidar um cenário cultural conectado com todas as linguagens cênicas relevantes. Suas ações reforçaram a necessidade de interligar nossa capital às grandes manifestações artísticas do mundo.
Sem ela, não teríamos o São Pedro. Sem ela, não teríamos o Multipalco, seu último legado, seu testamento, sua bênção à cidade. Temos dever e obrigação de trabalhar para que esse centro cultural seja inaugurado. Já confirmado como "Multipalco Eva Sopher", como não poderia deixar de ser, dotará a cidade com mais um espaço cultural de padrão internacional. Não apenas governantes e empresários devem se manifestar, mas todos nós, artistas e sociedade civil, temos a missão de ver concluída essa obra, agora sob a coordenação da equipe que Dona Eva foi formando ao longo dos anos. O padrão rigoroso com que a manutenção do São Pedro foi perseguido durante anos deve continuar - agora sob a orientação daqueles que, conhecendo e trabalhando com ela, assimilaram seu "modus operandi". Que sejam respeitados seus parâmetros e metas. Que sejam bem-vindas as obras de continuidade do Multipalco.
Nunca será demasiado enfatizar que cabe a todos nós a tarefa de manter em funcionamento o Theatro São Pedro, que é ponto pacífico insistir na inauguração do Multipalco. Em um país onde aparentemente se tem mais preocupação com a inauguração do que recursos de manutenção desses espaços fundamentais, teremos de driblar obstáculos e resistências, lembrando: sem cultura, não há cidadania. Sem cultura enraizada, não há identidade em lugar nenhum. Urge compreendermos que a ausência física dessa mulher extraordinária exige disponibilidade para além das divergências políticas que compõem a diversidade cultural de Porto Alegre. Unidos defendendo o que dona Eva nos legou.
Tenho me pego pensando nela. Sua voz, seu pensamento, seus conceitos sempre me vieram como balizas de luz. Desde muito jovem, me acostumei a conversar com ela. Saía dos nossos encontros maravilhado com sua disponibilidade de conversar de igual para igual com um jovem estudante de teatro, cujos sonhos foram moldados à sombra do seu exemplo. Numa época onde traços de delicadeza vão rareando cada vez mais, é importante testemunhar que, para além de sua firmeza descomunal, sempre me brindou com seu humor, sua educação, sua fé na arte.
Com dona Eva aprendi a sonhar e tentar ir atrás dos sonhos mais improváveis, sem esmorecer nem desanimar. Parâmetro para uma geração que chegou para somar às necessidades de uma cidade sempre carente de estímulos culturais relevantes, dona Eva será eternamente lembrada por seu exemplo único.
Talvez por seu histórico pessoal, o de pertencer a um grupo de pessoas que fugiu de uma Europa devastada pela intolerância e pelo preconceito, foi uma feroz defensora da liberdade de expressão. Nunca vi dona Eva titubear ante a necessidade de se manifestar a favor da arte e da cultura. Num tempo controverso como o atual, onde tantos querem sufocar e restringir nossas expressões artísticas, Eva Sopher mais uma vez nos aponta o caminho.
Amor e gratidão à dona Eva - para sempre.