A obrigação das empresas em gerenciar o retorno de embalagens e de produtos descartados, e de garantir a destinação adequada destes resíduos ao final de sua vida útil, não é tarefa fácil, mas é viável quando todos atores - consumidores, poder público e iniciativa privada - compartilham da responsabilidade. No entanto, ainda que haja esforços neste sentido, pouco se tem avançado no processo de logística reversa no País. Ainda que a legislação que norteia as ações adequadas esteja em vigor há seis anos, das 78 milhões de toneladas de lixo produzidas no Brasil em 2014, 30 milhões (41,6%) tiveram destino incorreto.
Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) e do Ministério do Meio Ambiente, desde 2010, quando foi implementada a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), o avanço foi insignificante, sendo que o percentual de rejeitos enviados para aterros sanitários passou de 57,6% para 58,4%. E o mais grave: dos 5.569 municípios brasileiros, 1.559 ainda destinam lixo doméstico (incluindo o que deveria ser reciclado) para lixões a céu aberto.
"O que mais chega até nós são os questionamentos de usuários sobre onde destinar embalagens, lâmpadas, pilhas, entre outros protagonistas deste capítulo da PNRS", informa o engenheiro químico e coordenador do Programa de Resíduos Sólidos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Mário Soares. "Como está, acaba pesando para as prefeituras, que, além de terem que arcar com parte da logística reversa em casos de descarte inadequado de resíduos (enquanto a lei prevê responsabilidade compartilhada entre empresas, gestores públicos e cidadãos), ainda mantêm de forma paternalista o funcionamento de cooperativas de catadores", observa o presidente da Associação Nacional dos Órgãos Gestores Municipais de Meio Ambiente (Anamma), Rogério Menezes.
O dirigente destaca que ambas situações permanecem ocorrendo, em vista de que os acordos setoriais para logística reversa que já foram assinados ainda são incipientes. "Mesmo que haja associações e fabricantes envolvidos com o assunto, faltam órgãos gestores para a organização do processo para determinados produtos, e é isso o que dificulta o andamento do processo em alguns setores", avalia Soares. Exemplo disso seria o setor das lâmpadas fluorescentes contendo mercúrio, que, apesar de já possuir um acordo setorial, está "engatinhando" na missão e segue aguardando a instalação de pontos de coleta no Estado.
"Apesar da lei vigente, ainda há muitos gargalos", concorda o presidente do Sindicato das Empresas Operadoras de Resíduos do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiresíduos), Mário Guilherme Sebben. O dirigente elenca uma série de fatores para este entrave, a exemplo da recusa em arcar com os custos, seguidamente "empurrados entre os atores". O resultado é preocupante: o Brasil coloca, hoje, 600 mil lâmpadas por mês (ou 180 milhões por ano) no lixão, sendo que uma boa parte acaba caindo nos aterros e contaminando com mercúrio o solo, os rios e, assim, toda a cadeia alimentar.
Reciclanip resgata 450 mil toneladas de pneus
Hoje, cerca 180 milhões de lâmpadas por ano vão parar nos lixões do País
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Os pneus inservíveis contam com um programa próprio de logística reversa, administrado pela Reciclanip, entidade sem fins lucrativos criada em 2007 e mantida pelos fabricantes que integram a Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip). A operação envolve o resgate de 450 mil toneladas (em 2015) de pneus, em 1.008 pontos de coleta espalhados pelo País, atendendo a 1.150 municípios; seguida da gestão da retirada dos produtos descartados, bem como de sua destinação correta. O gerente-geral da Reciclanip, César Faccio, destaca que o processo foi criado para cumprir a Resolução nº 258/1999, instituída pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que estabelece que a coleta e a destinação de pneus inservíveis são obrigatórias para fabricantes e importadores.
"Se hoje, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), é difícil fazer logística reversa, imagine naquela época", compara. Inspirados pelos modelos realizados na Europa e nos Estados Unidos, os fabricantes brasileiros firmaram parcerias com os municípios para implementar os pontos de coleta. Hoje, 19 empresas de transporte, que reúnem uma frota de 250 caminhões, estão encarregadas de buscar os produtos no comércio e nos locais eleitos pelas prefeituras. "Diariamente, 90 destes veículos deixam 70% do volume de pneus inservíveis em fornos de cimento para serem usados como combustível alternativo, e o restante vai para os postos de reciclagem, onde o produto é triturado para servir de matéria-prima (aço e borracha) para outras cadeias produtivas.
O programa conta com 12 empresas, incluindo todas as fabricantes nacionais e multinacionais. A responsabilidade compartilhada - envolvendo outros entes da cadeia, e também poder público e consumidores - veio com a revisão da Resolução nº 258/1999 e, posteriormente, com a implementação da PNRS. "Por enquanto, só a indústria tem mantido esta tarefa, mas creio que, em breve, teremos a participação de todos os atores da cadeia, até porque está previsto na legislação e não tem volta", sentencia.
Produtos ilegais são empecilho para acordo setorial de eletrônicos ser assinado
Situação ainda pior é a dos eletroeletrônicos e dos medicamentos, que sequer possuem acordo setorial, observa o advogado e consultor ambiental Beto Moesch. Desde 2001, ele promove anualmente o Seminário Cidade Bem Tratada, que reúne representantes do poder público, cadeia produtiva de diversos setores e a comunidade, para debater o tema de resíduos sólidos. "Se o assunto não for discutido, a pauta se perde", argumenta. Atualmente, os setores de eletroeletrônicos e de medicamentos estão em tratativas para um acordo junto ao Ministério do Meio Ambiente. "O que tem barrado o avanço neste diálogo é a cobrança de ICMS na hora da logística, uma vez que o imposto incide duas vezes: no produto inicial e no material reciclado", explica o presidente da Anamma, Rogério Menezes.
Já os eletroeletrônicos têm uma problemática à parte, pois a indústria nacional acaba penalizada, uma vez que não há como se cobrar a responsabilidade pelo recolhimento de quem insere produtos importados de forma ilegal. "Desta forma, além de competir nas vendas com os irregulares, os fabricantes brasileiros ainda têm que pagar a conta do recolhimento desses produtos, que não seriam de sua responsabilidade", observa o coordenador do Programa de Resíduos Sólidos da Fepam, Mário Soares. "Fora que o mercado de reciclagem de eletrônicos não está funcionando, com poucas empresas processadoras", opina Soares.
Segundo o presidente da Associação Nacional dos Órgãos Gestores Municipais de Meio Ambiente (Anamma), Rogério Menezes, o processo que melhor funciona neste sentido é o de embalagens de agrotóxicos, um dos pioneiros e "um exemplo de recolhimento que tem andado bem", a ponto do Rio Grande do Sul ser o segundo estado brasileiro que mais recicla estes itens. "Já funcionava mesmo antes da PNRS: hoje, 95% das embalagens de agrotóxicos comercializadas estão retornando à indústria gaúcha", garante.
Sistema pode funcionar
Hoje, cerca 180 milhões de lâmpadas por ano vão para nos lixões do País
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As embalagens de óleos lubrificantes, primeiras a ter a cadeia regulamentada conforme a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), contam com um processo de logística reversa que tem unidades em diversos estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Sul. O sistema de coleta e reciclagem é administrado pelo Instituto Jogue Limpo, e conta com 64 caminhões especializados que visitam, de forma programada, os pontos cadastrados para levar o material a 21 centrais de reciclagem.
Os sacos plásticos usados são pesados eletronicamente, e os dados são enviados automaticamente para o site do Programa Jogue Limpo associado ao Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) do ponto gerador. "No ato da pesagem, é emitido um comprovante de recebimento que poderá ser exigido pelo órgão ambiental por ocasião do processo de licenciamento ou inspeções", explica o diretor executivo do Instituto Jogue Limpo, Ezio Camillo Antunes.
O gestor destaca que, desde 2005, o setor está envolvido com esse trabalho. "Iniciou pelo Rio Grande do Sul e, após a legislação, ampliamos as ações para 14 estados brasileiros mais o Distrito Federal", recorda Antunes. O acordo setorial das embalagens de óleos lubrificantes foi o primeiro a ser assinado com o Ministério do Meio Ambiente, em 2012. "Pelo documento, a meta é que atendamos a todos os municípios destes estados onde já atuamos até 2016. Até agora, alcançamos 4.213, e nosso planejamento prevê chegar aos 800 restantes até o final deste ano", anuncia o dirigente da Jogue Limpo. A meta de encaminhar 4.4 mil toneladas de plásticos à reciclagem em 2016 foi superada no ano passado, quando o setor enviou 4,7 mil toneladas de embalagens de óleos lubrificantes para a reutilização.
As centrais de recebimento processam os frascos recolhidos, prensam, armazenam e remetem a uma recicladora, onde são triturados e submetidos a um processo de descontaminação do óleo lubrificante residual. Só depois são transformados em matéria-prima para embalagens e outros produtos plásticos. "Este ciclo virtuoso evita o desperdício de um material que, se fosse jogado na natureza, levaria 400 anos para se degradar", pontua Antunes.
Em 2015, 97% do material coletado pelo sistema foi reciclado, afirma o gestor. O plástico volta para o mercado transformado em novas embalagens, material de construção civil, madeira plástica para tapumes ou para estrados. O Instituto Jogue Limpo conta com 18 indústrias associadas, que ajudam no rateio das despesas da logística reversa, nenhuma delas gaúcha, lamenta. "Estamos em tratativas, mas ainda não obtivemos a adesão de empresas do Rio Grande do Sul."
Produtos sustentáveis surgem para atender a demandas
Hoje, cerca 180 milhões de lâmpadas por ano vão para nos lixões do País
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A partir da implementação do sistema de logística reversa - que inclui transportadoras e recicladores - o setor de pneus inservíveis já contribuiu para a geração de mais de 1,4 mil empregos verdes desde 2007. Mas isso é apenas parte do mercado que se cria. As empresas de transformação surgem para suprir a demanda por produtos sustentáveis e, muitas vezes, indústrias voltadas para outros fins acabam aproveitando um filão de mercado.
É o caso da gaúcha Collor Mais, de Novo Hamburgo, especializada em pigmentação e tingimento de calçados. "Vimos a oportunidade e decidimos investir em um projeto destinado a utilizar o pó da borracha para o solado de sapatos, sapatilhas e chinelos", comenta o sócio-gerente da empresa, Darci de Lima. A matéria-prima é adquirida de uma recicladora localizada em Nova Santa Rita, que coleta voluntariamente pneus em borracharias da região.
"Fizemos um produto que se utiliza de 70% do pó da borracha do pneu que se transforma em um composto para a injeção de solado - de um termo fixo para um termo plástico", explica Lima. "Depois de processado, o solado não volta mais para o meio ambiente, porque o que sai das máquinas injetoras, é triturado e reutilizado de novo." Para uma tonelada de composto, a empresa utiliza de 700 kg de pó de borracha de pneu. Após dois anos de testes, a Collor Mais se prepara para colocar o produto no mercado. A projeção de venda inicial é de 100 toneladas/mês, "o equivalente a 70 toneladas de borracha que teriam virado lixo", conforme o empresário. De acordo com Lima, a inovação deve atrair investidores, enquanto ainda não há concorrentes no mercado.
A ideia é ampliar os recursos, a ponto de aumentar o volume de produção para 500 toneladas/mês em um curto prazo, projeta o sócio-gerente da Collor Mais. "Tem uma indústria alemã interessada neste projeto, pois lá é obrigatório o uso de 30% de material ecológico na fabricação de produtos", destaca Lima, que considera que "talvez seja até mais fácil exportar a novidade". Por enquanto, o solado feito a partir de pó de pneu deve gerar 30 novos empregos na equipe da empresa gaúcha, que conta atualmente com 10 pessoas. "Fizemos testes com as marcas West Coast, Pegada e Cravo e Canela, que já aderiram ao produto, com projetos pilotos."
Recicladores querem reconhecimento e incentivo
A visibilidade do trabalho das cooperativas de reciclagem para a inclusão social e para a preservação ambiental demoraram para acontecer, na visão do membro da equipe de Articulação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, Alex Cardoso. Para ele, os catadores devem ser reconhecidos como empreendedores e, assim, passarem da condição de serem apoiados para a de receberem incentivos.
Ainda que no Rio Grande do Sul já existam mais de 70 cooperativas de catadores de materiais recicláveis - sendo que 21 destas organizações estão na Capital -, números e prazos referentes à Política Nacional de Resíduos Sólidos estão longe de serem alcançados no Estado, opina Cardoso. "Um dos grandes entraves é que alguns municípios contratam empresas que fazem somente a parte da coleta seletiva, mas não investem no tratamento adequado dos resíduos."
Cardoso considera que houve avanços em algumas cidades. "Há as que migraram para a coleta seletiva solidária, que inclui a contratação de catadores para realizarem o serviço", pondera. Um dos grandes exemplos, segundo ele, ocorre na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde 27 das 36 cidades contam com o trabalho de catadores na reciclagem.