Em alguns países submetidos à ditadura, governos controlavam até mesmo o que se comia. Para driblar as autoridades e celebrar o prazer da alimentação, cozinheiros reuniam os clientes - na verdade, comparsas - em suas casas e preparavam invenções gastronômicas com os produtos que tivessem ao alcance. Os restaurantes escondidos iam contra a lógica capitalista de chef-garçom-cliente. O modelo de negócio também foi ao encontro do conceito contemporâneo de slow food, estilo de gastronomia que promove a valorização apaixonada da comida e a qualidade das refeições. O movimento, chamado de antirrestaurante, se espalhou pelo mundo, e começa a ser experimentado por chefs em Porto Alegre.
Moradora da Capital há um ano, a chef espanhola Belen Ruiz Montava visitou um antirrestaurante pela primeira vez em Praga, em 1992, mas o negócio ainda não tinha esse nome. Em uma temporada em Cuba, 10 anos depois, conheceu os restaurantes secretos nas casas, conhecidos no país como “paladares”. Em dezembro, Belen organizou o seu primeiro jantar na Capital seguindo o conceito, no laboratório gastronômico S3 Food Lab. “Em Porto Alegre, ir a um restaurante diferente significa comer pizza, rodízio de carnes ou sushi. Nas festas, os menus são sempre risoto, filé e petit gateau. A oferta é muito limitada”, critica a chef, que pretende incentivar uma nova forma de comer em seu antirrestaurante.
Como o nome diz, o conceito se refere ao contrário de um restaurante comum. Em casas particulares, que só abrem com data marcada, o menu é diferente a cada dia. A refeição, mais do que um ato de comer, é uma degustação com a companhia do chef. Não há garçons para servir, e pessoas que não se conhecem se encontram. “É como viajar. A refeição deve ser desfrutada com prazer”, explica Belen.
Depois da primeira experiência, com 20 pessoas e menu baseado na gastronomia espanhola, ela pretende transformar seus eventos em uma marca. Cobrando R$ 90,00 por pessoa, ou R$ 130,00 com os vinhos, Belen conta que ainda precisa encontrar uma forma de lucrar com os eventos. “Se eu não alugasse o espaço, seria muito barato. Nosso desafio agora é criar um público para isso”, projeta.
Um dos primeiros antirrestaurantes próximo a Porto Alegre foi o já extinto Daqui, na zona rural de Viamão. O professor de culinária do Senac Gabriel Rossi morou e trabalhou no sítio do casal que criou a iniciativa, em 2012. Rossi conta que o menu dos eventos era elaborado somente com alimentos orgânicos, produzidos na residência, e que não existia um valor previamente estabelecido. Cada pessoa pagava o que considerava justo pela experiência. “Era um projeto de vida. O lucro era incerto, mas havia vantagens. Os gastos eram pequenos, não havia impostos nem funcionários para pagar, e nós, cozinheiros, tínhamos liberdade para criar”, relata Rossi.
Encantado com o Daqui, o economista e artista plástico Luiz Targa resolveu criar um antirrestaurante em sua casa, o Mesa de San Miguel. O cozinheiro tinha o costume de receber amigos e oferecer jantares, até que, em janeiro de 2013, resolveu experimentar cobrar as refeições. Mas, diferentemente do Daqui, pensou em criar um negócio economicamente viável, ao lado da chef Aline Bonnamain. “Vi que era uma experiência muito legal, mas difícil de vingar”, conta. No início, elaborava “banquetes aristocráticos”, como ele mesmo chama, com 12 pratos, a R$ 100,00 por pessoa. “Tentei fazer barato, mas eu pagava para as pessoas virem comer.”
Atualmente, em duas noites por mês, Targa organiza jantares com duração de quatro horas, abertos ao público, para até 16 pessoas, entre R$ 190,00 e R$ 230,00 por cliente. Para 2015, tem planos de ampliar a frequência dos eventos e trazer chefs convidados para participar. “É extremamente confortável. Não pagamos aluguel, não temos placa na frente nem interesse em ser uma atividade regular”, afirma. Mas o negócio tem suas regras. Os clientes precisam confirmar presença e pagar com antecedência, e Targa já avisa que não possibilita modificações no cardápio que ele oferecer. “Minha comida tem gosto de verdade. Não é para doente”, brinca.
Novos negócios apostam em diferenciais como exclusividade
Apesar de não serem exatamente secretos, os antirrestaurantes não são divulgados como um estabelecimento comum. Normalmente, anúncios boca a boca ou por meio de uma rede de e-mails transmitem o convite. O cozinheiro do antirrestaurante Casa Cardozo, Marcos Cardozo, conta que a clientela, em geral, tem um perfil parecido. “A maioria são casais que gostam de viagens, gastronomia, vinhos e cinema”, define. Mas basta ser interessado e pagar para participar de um evento.
Na Casa Cardozo, o proprietário cobra R$ 60,00 por pessoa. Em três anos de negócio, Cardozo viu outros antirrestaurantes abrirem e, logo em seguida, fecharem. “Gostaria de ter mais concorrência, para poder trocar ideias e divulgar o conceito. Nossos clientes são curiosos que vencem o estranhamento”, relata.
Nem só de antirrestaurantes vive o mundo secreto de negócios gastronômicos na Capital. Uma espécie de bar secreto, chamado pelo proprietário de clube cervejeiro, também tem atraído clientes. No Bier Keller, especializado em cervejas especiais, só entra quem for convidado ou indicado por um cliente da casa. O negócio foi montado há 10 anos pelo empresário Vitório Levandovski, quando bares de cervejas artesanais ainda não eram uma febre. No entanto, mesmo com a difusão da cultura cervejeira em outros estabelecimentos, o negócio secreto continua se diferenciando pela proposta.
“Garantimos a privacidade e a autonomia dos clientes, que se sentem especiais”, explica Levandovski. Eles mesmos se servem e podem, inclusive, cozinhar ou encomendar comidas de fora. A loja abre somente de segunda a sexta-feira, e não adianta bater na porta no horário comercial se já não for frequantador assíduo. É preciso ser indicado por outro cliente.
Nota atualizada às 15h40min.