Reconhecido principalmente por sua atuação acadêmica como professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro foi titular do Ministério da Educação (MEC) de abril a outubro de 2015, no segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). "Eu entrei quando o impeachment já era uma possibilidade, e saí quando era quase uma certeza", comenta.
Em meio a esse contexto, Ribeiro conta que conviveu com os fatores que foram enfraquecendo o governo da petista até sua cassação, como a mudança de política econômica após a campanha eleitoral, "o que levou a uma decepção de muitas pessoas que tinham lutado pela eleição dela", a dificuldade de diálogo com a base no Congresso e também o fato de que "os grupos que foram beneficiados pelos governos petistas ficaram combatendo o próprio governo Dilma. Isso, no meu caso, significou que, três vezes por semana, havia manifestações diante do MEC, algumas justas; outras, não", diz.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Ribeiro também fez críticas ao projeto Escola Sem Partido e à proposta de exclusão do conceito de igualdade de gêneros. "Ao impedir que a escola forme, abra a cabeça das pessoas, você fere de morte a própria meta da escola", alerta. Sem investimentos em educação, adverte o professor, "o Brasil vai, economicamente, desabar. Nós já temos um problema de mão de obra".
Jornal do Comércio - Começando pela sua passagem pelo MEC, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, o senhor liderou a pasta em meio ao processo de impeachment. Como era estar no governo federal nesse contexto?
Ribeiro - Bom, esse é o tema de um livro que eu vou lançar neste mês, pela editora Três Estrelas, que se chama "A pátria educadora em colapso". São minhas reflexões sobre essa crise que levou ao impeachment. Eu entrei quando o impeachment já era uma possibilidade, e saí quando era quase uma certeza. Então nós temos o fato de que a presidente mudou a política econômica logo depois da vitória eleitoral, o que levou a uma decepção de muitas pessoas que tinham lutado pela eleição dela, e que se sentiram depois como se tivessem votado em Dilma e recebido Aécio Neves (PSDB). Isso enfraqueceu muito o apoio da Dilma, do pessoal que efetivamente apoiou, ao mesmo tempo em que o Aécio entrou nessa campanha. Houve uma falha grande também do lado do governo, que foi a dificuldade de diálogo. Eu somaria um terceiro ponto: os grupos que foram beneficiados pelos governos petistas ficaram combatendo o próprio governo Dilma. Isso, no meu caso, significou que, três vezes por semana, havia manifestações diante do MEC, algumas justas; outras, não. E essas manifestações tornavam muito difícil a atuação do governo. Houve uma greve que durou quatro meses, os professores e funcionários das universidades federais, que tinham recebido um aumento escalonado em três anos, de 45%, perante uma inflação de 20%, o que dava um aumento real superior a 20%. Eles criaram uma situação de que, depois de 12 anos de avanços em políticas sociais, aparentemente os beneficiários dessas políticas não tinham assumido uma convicção, uma percepção de que era preciso defender esse projeto.
JC - Que papel a questão da educação vai ter na campanha, na sua opinião?
Ribeiro - Eu, sinceramente, não sei, porque geralmente o papel principal nas campanhas é o da saúde. Por uma razão muito simples: as pessoas sabem quando estão doentes, e não sabem de suas deficiências educacionais. Então, no estágio que nós temos de educação no Brasil, ela não é uma prioridade, porque, na cabeça das pessoas, e mesmo nas campanhas eleitorais, em primeiro lugar está a saúde. Dói, a pessoa pode morrer. Depois, a segurança pública, é um tema que mexe muito com as pessoas.
JC - Em Porto Alegre, houve o ataque e a defesa à mostra Queermuseu. Levando em conta que é uma exposição de arte, o que isso diz sobre o País hoje?
Ribeiro - Penso que há uma minoria muito barulhenta que ocupa um espaço muito grande na opinião pública, faz manifestações, está nas redes sociais, nos jornais, em toda parte, essa minoria muito virulenta e sem apreço pela democracia... Sem fazer uma análise mais aprofundada, não creio que essa minoria represente tanto a sociedade. Agora, isso vai repercutir na área da educação na seguinte maneira: em 2010, o Plano Nacional da Educação foi submetido ao Congresso, foi aprovado e sancionado em 2014, quatro anos de tramitação. Não é por acaso que, a certa altura dessa tramitação, de 2013 em diante, as pautas da chamada ideologia de gênero e depois da Escola Sem Partido vieram. São duas pautas que eu entendo como contrárias à educação. Educar vem do latim "ex" mais "ducere", sendo que "ex" é de dentro para fora, "ducere" é conduzir, levar; então "ex ducere", educar, significa fazer sair de dentro para fora. Ou seja, abrir para o mundo. Educação é isso. Ela faz você sair da família, do bairro, da religião, da etnia, enfim, da cultura que você tem, que não é que ela seja ruim, mas faz abrir-se para o mundo e ter novas perspectivas. O que, muitas vezes, é a revelação da vocação das pessoas. Ao impedir que a escola forme, abra a cabeça das pessoas, que é o tema desses dois grupos, você fere de morte a própria meta da escola. A meta da escola não é ensinar português, matemática, só. É socializar. Existe, na sociedade brasileira, uma série de interesses consolidados há muito tempo, e esses interesses não querem que a sociedade mude. Se você for para os Estados Unidos ou para a Europa, você vai ver que lá as coisas que são importantes hoje supõem justamente uma abertura de mentes. Se você não fizer isso, o Brasil vai, economicamente, desabar. Nós já temos um problema de mão de obra.
JC - O crescimento desse tipo de corrente não é um pouco decorrência da própria falta de investimento da educação?
Ribeiro - Acho que é muito funda a coisa. Quer dizer, nós temos uma sociedade que nunca deu muita prioridade à educação. Foi criada a primeira universidade 400 anos depois da primeira universidade de língua espanhola do continente. Então, quando você decide mexer nessa coisa, você está indo contra toda uma estrutura que foi criada, e que não foi criada por acaso. Quer dizer, o projeto de Brasil que foi implantado neste século foi um projeto no qual no qual você... educar, dar igualdade em oportunidade não é prioridade. Aliás, não é sequer parte do projeto. Então, toda vez que surge algo pretendendo mudar esse espaço, às vezes, nem é compreendido. Por exemplo, se alguém fala em igualdade em oportunidades, que é o tema liberal por excelência, Guilherme Boulos (PSOL) diz que é socialista. Não, é liberal. Mas, veja, o projeto básico do liberalismo... a nossa direita não quer isso, ela acha que isso é comunismo.
JC - Por quê?
Ribeiro - No Brasil, há um grande erro, talvez por falta de educação, talvez por má-fé, que é confundir liberalismo com redução do papel do Estado. Na verdade, o liberalismo não parte de um "não": não ao Estado. Ele parte de um sim: sim à capacidade de cada um. (Mas) no Brasil, de modo geral, os que se dizem liberais apenas querem reduzir o papel do Estado. Uma política com uma ação afirmativa, por exemplo, é uma política liberal. Liberal raiz, se você quiser dizer isso. Se todo mundo tiver oportunidades iguais e melhores do que a maior parte hoje tem, então nós temos a possibilidade de crescer muito economicamente.
JC - Como o senhor encarou o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ)?
Ribeiro - Horroroso. Penso que foram dois recados. Um recado para ela, e para todas as pessoas que estão na mesma posição dela, dizendo "não vamos tolerar vocês. É guerra declarada. Nós vamos matar quem tenta emancipar as comunidades da tutela do tráfico, das milícias, da polícia corrompida, tudo mais". Mas houve um recado também para o governo federal e para as Forças Armadas. Tipo, "quem manda aqui somos nós. Vocês não se façam de engraçados, não pensem que vocês vão controlar aqui, porque nós vamos fazer uma coisa acintosa. Vamos matar uma liderança, vamos fazer um crime de ampla visibilidade para mostrar que vocês não podem nada conosco". Tanto que se passaram dois meses, e ainda ninguém foi indiciado pelo crime.
JC - Sobre as eleições: temos esse perfil do Congresso Nacional que foi eleito em 2014. O senhor acredita que, na votação de 2018, isso se repita?
Ribeiro - É difícil antever isso. O fato é que nós temos um problema histórico com os Legislativos, que é o fato de que o Brasil, como todo o Continente Americano, é presidencialista. Isso quer dizer que nós damos muito mais importância à eleição do Poder Executivo do que à eleição parlamentar. Qualquer nível, de vereador a senador. E isso traz um problema sério. As pessoas escolhem na última hora, votam em qualquer um para não perder o voto, e por aí vai. E não mudando isso é muito difícil você ter uma alteração. Somando isso ainda à desigualdade de representação por estado, São Paulo perde 40 dos seus deputados, que teria pela sua população, e os menores estados têm um mínimo de oito deputados, quando alguns deles não teriam população talvez nem para um. Para completar essa história, desde que eu acompanho a política, se o Executivo não tem tendências sobre o Legislativo, é um desastre. A gente viu bem isso no final da Dilma. Quer dizer, ela não tinha mais ascendência, então você tem qualquer liderança lá dentro, e uma liderança já condenada, como o (ex-deputado federal) Eduardo Cunha (MDB-RJ), então essas lideranças fazem o que querem.
JC - Como vê o papel da esquerda hoje, a própria sobrevivência dela? Será que tem chance de a esquerda, com um desses representantes, ir para o segundo turno?
Ribeiro - O Brasil passou mais de 20 anos nesse confronto PT-PSDB, mas que foi extremamente bom de um lado, porque nenhum candidato horroroso disputou a presidência nesse período. Você pode se queixar de muitos, mas você não teve nenhuma figura inaceitável, como os saudosos da ditadura. (Mas) passou o tempo disso. Tanto passou que finalmente o PSDB decidiu deixar de ser cabeça de lista e foi fazer que o sócio minoritário dos dois (PT e PSDB), o MDB, passasse a ser, o que foi um desastre. O resultado disso curiosamente é o seguinte: o PSDB está mais desgastado que o PT. Não quer dizer que o PT ganhe as eleições. Quer dizer, o (ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT) mantém uma popularidade muito maior que qualquer nome do PSDB poderá ter. Por outro lado, há muito mais obstáculos para alguém da esquerda ganhar, ou de centro-esquerda, do que para o (ex-governador Geraldo) Alckmin (PSDB). Na verdade, o Alckmin só falta ser empurrado para ganhar, porque a chance dele, em termo de popularidade, é baixa. Mas eu penso que os terceiros nomes até agora foram caindo fora. A Marina (Silva, Rede) teria muito pouco tempo de televisão, parece que nem um minuto.
JC - Tem uma irregularidade na presença dela.
Ribeiro - De não ter, de certa forma, dado um feedback para os eleitores dela. Você não mobiliza 20 milhões de pessoas e depois não se mantém presente a todas elas intensamente. Então eu penso que há uma chance, hoje, de você ter um segundo turno com um nome da direita, talvez o Alckmin, um nome de centro-esquerda, não sei, o Ciro (Gomes, PDT) ou o indicado de Lula. Isso vai ser uma situação delicada, porque, embora o Ciro seja uma pessoa que foi sempre leal ao PT, o indicado do Lula já entra no páreo com um patamar elevado. Então vai ter que haver muita negociação. Basicamente, se a centro-esquerda quer estar presente no segundo turno, ela tem que construir um acordo equilibrado para o primeiro turno. Tanto a direita quanto a centro-esquerda têm que construir acordos. Porque senão...
JC - Senão a extrema-direita pode vencer?
Ribeiro - Não acho que tenha tanta chance. Tanto o João Amoêdo (Novo) quanto o Flávio Rocha (PRB) são fracos. E o nome mais forte deles, que é o (Jair) Bolsonaro (PSL), dificilmente terá candidatos a governador, dificilmente terá palanque nos governos dos estados. Sem contar que ele é um personagem passível de muito desgaste. Mas nós não podemos excluir nada. Nesse momento, você provavelmente teria o Bolsonaro e alguém da centro-esquerda concorrendo, e o Alckmin estaria fora. O ideal nessa eleição seria que se retomasse a política. Há interferência do Judiciário na política. Não tem sentido o (ministro do Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes dizer como ele acha que deve ser o regime político no Brasil. Eles (do Judiciário) deviam se calar sobre isso. É um absurdo. Seria então restaurar o espaço da política e a gente melhorar a representação do Congresso Nacional.
Perfil
Renato Janine Ribeiro nasceu em Araçatuba (SP) em 1949. Foi ministro de Estado da Educação no governo de Dilma Rousseff (PT) de abril a outubro de 2015. Desde 1994, é professor titular da Universidade de São Paulo (USP), na disciplina de Ética e Filosofia Política. Em 2016 se tornou professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP. Concluiu o doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 1984. Recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico em 1997, a Ordem de Rio Branco em 2009 e a Ordem do Mérito Naval em 2015. Concebeu e apresentou duas séries de programas de TV sobre Ética, na TV Futura e depois apresentados na TV Globo. Foi consultor do Novo Telecurso, para a disciplina de Filosofia. Atua na área de Filosofia Política, com ênfase em Teoria Política. Janine Ribeiro publicou diversos livros na área de Filosofia e Ciência Política, entre os quais "A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil", que venceu o Prêmio Jabuti em 2001, na área de ensaios e ciências humanas.