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entrevista especial

- Publicada em 28 de Maio de 2017 às 22:21

Olho o voto distrital com desconfiança, diz Constanza

"Para nós uruguaios, tudo que fragiliza a política brasileira tem impacto negativo", diz Constanza

"Para nós uruguaios, tudo que fragiliza a política brasileira tem impacto negativo", diz Constanza


fotos: CLAITON DORNELLES /JC
A senadora uruguaia Constanza Moreira foi a primeira mulher a concorrer como pré-candidata à presidência da República. Ela perdeu a disputa interna do partido Frente Ampla para o médico Tabaré Vázquez - que antecedeu José Mujica e, agora, foi seu sucessor no Executivo uruguaio. Para Constanza, a representatividade feminina ainda é pequena, apesar dos 30% de senadoras mulheres no Uruguai. "Não temos nem cota, ela ocorreu só por um período. E entre os deputados temos muito menos, temos 11% (de mulheres)."
A senadora uruguaia Constanza Moreira foi a primeira mulher a concorrer como pré-candidata à presidência da República. Ela perdeu a disputa interna do partido Frente Ampla para o médico Tabaré Vázquez - que antecedeu José Mujica e, agora, foi seu sucessor no Executivo uruguaio. Para Constanza, a representatividade feminina ainda é pequena, apesar dos 30% de senadoras mulheres no Uruguai. "Não temos nem cota, ela ocorreu só por um período. E entre os deputados temos muito menos, temos 11% (de mulheres)."
Em visita a Porto Alegre para um evento na Assembleia Legislativa sobre a reforma política, a parlamentar contou um pouco da experiência uruguaia com o voto em lista fechada, que considera mais representativo. "Você escolhe uma lista dentro do partido, em que estão representadas orientações políticas diferentes", explica.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Constanza diz ver o voto distrital - que integra a proposta de reforma política atualmente debatida no Congresso brasileiro - "com desconfiança". "É o contrário da lista fechada. Você precisa de uma mediação política entre o eleitor e o candidato (o partido), porque o poder político do representante é tão grande que esse vínculo nunca é virtuoso", opina, afirmando que a prática pode levar ao clientelismo.
Constanza também comenta como a crise política brasileira reflete no Uruguai: "Se fizéssemos uma pesquisa de opinião, o que o uruguaio médio diria é que teria que fazer eleições adiantadas para remediar essa crise de legitimidade".
Jornal do Comércio - O Brasil tenta emplacar uma efetiva reforma política há muitos anos, ainda sem sucesso. Como a senhora vê o sistema eleitoral brasileiro, também em comparação ao Uruguai?
Constanza Moreira - Um dos grandes problemas do Brasil é o número de partidos políticos e sua fraqueza, precisa de muitos anos de democracia (para fortalecê-la). Isso leva tempo. A minha primeira reflexão é que, para ter partidos fortes, há a questão de cultura política, representações de interesse e questões de sistema eleitoral. No Uruguai, os partidos são fortes não só porque há um sistema de lista fechada e bloqueada, mas porque lhe obrigam a votar tudo dentro do mesmo partido. Antes da reforma constitucional de 1996, você, em uma só eleição, votava para presidente, senador, governador e deputado, mas tudo dentro da mesma legenda. Isso levou muito tempo para ser mudado, e levou à existência de só dois ou três partidos, e adesões partidárias muito fortes. Isso junto com uma legislação de que o voto é muito obrigatório: se você não vota e é aposentado, não te pagam a aposentadoria. Então acho que, juntando as duas coisas, você tem uma ideia de por que têm poucos partidos, e partidos fortes.
JC - E como se dá a questão do voto em lista fechada no Uruguai? Quais as vantagens?
Constanza - As vantagens são que reforçam a lealdade aos partidos. Mas, ao mesmo tempo, você vincula o voto. Tem que fazer as duas coisas: não só lista fechada e bloqueada, mas a vinculação do voto, pelo menos para senadores e deputados, obrigar as pessoas a escolher dentro de um partido. O que faz o Uruguai? Quando condiciona o voto para votar em um partido, dentro desse partido há muito a escolher. Mas é uma lista em que estão representadas orientações políticas diferentes. Supondo que você é uma democrata cristã, que quer votar na Frente Ampla, mas não quer votar em comunista. Aí vota na democracia cristã. Isso dentro da Frente Ampla. Dentro do Partido Nacional há uma ala mais conservadora, católica, rural e uma ala mais progressista, do pequeno produtor rural etc. Você tem como escolher. E dentro do Partido Colorado, que está muito pequeno hoje, sempre houve uma ala mais conservadora, populista, estatista e uma ala mais liberal. Então poderia escolher, mas votando dentro do Partido Colorado. Então se costumava dizer que no Uruguai há um multipartidarismo mascarado de bipartidarismo.
JC - Esse formato garante que haja uma representatividade real da população, em sua opinião?
Constanza - Na primeira metade do século XX, havia essa disputa de campo e cidade, conservadorismo e progressismo, laicismo e catolicismo. E isso estava bem representado com o Partido Colorado e o Partido Nacional, e as alas conservadoras e progressistas dentro de cada partido. Havia uma representação de interesse genuína. Depois da Segunda Guerra Mundial e dos anos 1950, emergiram, com muita força, o proletariado industrial e os abandonados do campo. Isso foi representado por movimentos sociais, que estavam nas mãos de comunistas, socialistas, anarquistas, e esses movimentos foram a base da construção da Frente Ampla. Isso quer dizer que a Frente Ampla é um partido atípico, que se transforma. É um pouco como o PT, que primeiro veio o sindicalismo e depois o PT.
JC - E como a Frente Ampla vem se transformando, a exemplo do que disse?
Constanza - Nós temos um problema desde que a Frente Ampla está no governo, que é da criação de novas frentes de esquerda, à esquerda da Frente Ampla, em busca de uma esquerda mais pura, mais limpa, com os ideais que teríamos largado pelo caminho. Mas, depois que você chega ao governo, isso é inevitável. Têm ecologistas, há movimentos que tentam formar uma nova central sindical, então existe esse problema dentro do campo social da esquerda, no qual a Frente Ampla continua sendo dominante. Mas acho que antes havia uma monopolização das classes trabalhadoras, e agora está um pouco mais repartido. A Frente Ampla continua dando conta do feminismo, dos direitos humanos, do cooperativismo. Na direita, a representação é de classe, claro. Empresários, associações e federações rurais, federações de indústrias, igreja, tudo isso fica bem representado nos partidos tradicionais. Então tem uma polarização social, ideológica e política.
JC - No Brasil, se discute também o voto distrital misto. A senhora acha que isso tende a privilegiar que pessoas já conhecidas ou tradicionais na política sempre vençam?
Constanza - Sempre olhei com muita desconfiança o voto distrital, porque é o contrário da lista fechada. Ou você apoia a adesão ao partido ou a adesão pessoal. A ideia de que você tem que ter um vínculo tão íntimo entre o eleitorado e o representante, para mim, entre isso e o clientelismo é um passo. Você precisa de uma mediação política entre o eleitor e o candidato, porque o poder político do representante é tão grande que esse vínculo nunca é virtuoso, sempre pode ser desvirtuado. Então a ligação direta entre eleitor e candidato, no interior é super direta, e isso é clientelismo, é a retribuição clientelar do século XIX. Então no voto distrital não se favorece o fortalecimento dos partidos. Eu acho que as medidas que garantem as liberdades do eleitor têm a ver com a democratização dos meios de comunicação e com o dinheiro. O financiamento tem que ser público.
JC - Público através de um fundo eleitoral ou de doação direta do eleitor?
Constanza - Público por parte do Estado. Nós temos doações de pessoas físicas, mas ninguém doa dinheiro para partido. A Frente Ampla se beneficia com cargos políticos, basicamente financiamento público. A liberdade do eleitor é a de conhecer seus candidatos em pé de igualdade. Então acredito que o financiamento tem que ser público, não pode haver doação de empresas, e a Frente Ampla está demandando isso agora. Defendemos a ideia de que pode haver doação nominal, mas não de empresas, tem que haver um limite de custos de campanha. A televisão na campanha tem que ser gratuita (até 2014, no Uruguai, não havia horário eleitoral gratuito), porque o dinheiro do Estado acaba indo para a televisão, então a questão do dinheiro e a política tem uma parte a ver com a campanha, e outra é a capacidade de pressão que as corporações têm sobre os representantes. Um grande exemplo disso são os Estados Unidos, onde ocorre a política do lobby desmascarada, nua. De que importa meu voto se vou ter grandes empresas controlando meus representantes? Esse é o grande problema do voto distrital.
JC - E quanto à democracia direta? É comum haver plebiscitos e referendos?
Constanza - Muito comum. Essa é outra coisa que contribuiu para fortalecer a relação do cidadão comum com a democracia, o fato de ele estar obrigado a decidir sobre si. Sobre se as empresas são públicas ou não, a maioridade penal, o aborto... não é muito simples fazer referendo ou plebiscito, precisa juntar muitas assinaturas, mas somos de assinar coisas desse tipo, e, de 1984 até agora, não houve uma eleição na qual não precisamos nos pronunciar sobre outra coisa além dos candidatos. Ou sobre a impunidade, o que chamamos de lei da caducidade, a anistia aos militares na época. Então acho que isso é uma tradição nossa e da América Latina, o uso da democracia direta para fazer outra ponte entre os cidadãos e a política, o uso de mecanismos de democracia direta.
JC - A senhora foi a primeira mulher a disputar uma pré-candidatura à presidência, concorrendo com o atual presidente uruguaio Tabaré Vázquez. O que falta no Uruguai para que uma mulher seja candidata à presidência da República?
Constanza - Faltam coisas que vocês têm. Nós temos uma classe política muito envelhecida; a Frente Ampla mais ainda: Mujica tem 80 anos; Tabaré, 70 e poucos. E a Frente Ampla, tentando segurar o resultado eleitoral, hipotecou a renovação geracional, então toda essa geração pós-ditadura é a geração que domina a Frente Ampla. O gabinete está cheio de pessoas dessa idade, e acho que a Frente Ampla tem o problema de renovação geracional e de gênero. Não é só porque não temos mulher candidata, não as temos na fórmula, nem vice-presidente. Não temos nem cota, ela ocorreu só por um período. Agora, aprovamos no Senado a continuação da cota, falta chegar aos deputados, e tem gente contra.
JC - Cota para a candidatura?
Constanza - Cota na lista de ocupação. Os dois gêneros a cada três lugares.
JC - Mas como está sendo essa luta por conquista de espaço? As pessoas não votam nas mulheres?
Constanza - Sim, tanto que há várias pesquisas que falam que votariam em mulher. Mas faltam mulheres nas listas. No Senado, estamos muito bem, temos 30%. Entre os deputados, temos muito menos, 11%, e no ministério estamos com 38% de mulheres, temos cinco em 13. Então estamos nos mobilizando entre as mulheres de todos os partidos para que, na próxima eleição, não haja uma lista sem mulheres. Mas continua sendo voluntário, não há nenhuma regra para isso.
JC - Sobre a crise política brasileira, como a Frente Ampla vê essa situação e como isso está refletindo na opinião pública uruguaia?
Constanza - Para nós, tudo que fragiliza a política brasileira tem impacto negativo para a gente, porque o Brasil é nosso principal sócio comercial e investidor, e o Brasil tinha a capacidade de liderança de uma solidariedade regional latino-americana que servia sobretudo aos países pequenos, então estamos muito preocupados com o Brasil. Lógico que diferimos na forma como interpretamos a política brasileira, pois, para nós (da Frente Ampla), aconteceu um golpe de estado, para a direita, não. Nós diferimos nesse sentido, mas a imagem que se transmite é de que há uma grande corrupção no sistema político brasileiro, nas relações carnais entre empresariado e política. Nós vimos isso na Argentina, que foi o caso de Julio Cobos contra Cristina Kirchner sobre o conflito no campo (Kirchner quis aumentar os impostos na exportação de soja e girassol, deu empate na votação do Senado e Cobos, que também presidia o Senado, votou contra o aumento dos impostos). Para nós, isso é incompreensível, porque o governo é de um só partido, presidente e vice vão juntos. Antes da Frente Ampla ganhar, havia essas composições de partidos políticos governando, mas isso de um vice-presidente ser parte da coalizão que tira a presidente, isso é muito raro. Além disso, ninguém conhece o (Michel) Temer (PMDB), todo mundo conhecia a Dilma (Rousseff, PT), todo mundo conhecia o (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT). Nós também conhecíamos o José Serra (PSDB). Temer é visto como um personagem raro, obscuro, que virou presidente. As coisas são muito piores do que imaginávamos. Se fizéssemos uma pesquisa de opinião, o que o uruguaio médio diria é que teria que fazer eleições adiantadas para remediar essa crise de legitimidade.

Perfil

Constanza Moreira tem 57 anos e cumpre mandato de senadora pelo partido político de esquerda Frente Ampla desde 2010. Foi a primeira mulher uruguaia a disputar pré-candidatura à presidência da República, concorrendo internamente com Tabaré Vázquez, eleito presidente do Uruguai em 2015. Constanza estudou Letras e Filosofia na Universidade da República, e Sociologia no Centro Latinoamericano de Economia Humana. É doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e foi a primeira mulher a dirigir o Instituto de Ciência Política da Universidade da República. É autora de três livros e publica artigos acadêmicos em livros e revistas. Esteve presente nos meios de comunicação do Uruguai como analista política desde 1998. Sempre foi vinculada à militância política, mas somente em 2007, por indicação de José Mujica, disputou a presidência da Frente Ampla e, depois, foi eleita senadora.